A consolidação do videogame como mídia popular e expressão artística levantou inúmeros debates com relação a como devemos lidar com este tipo de produto. Assim como qualquer arte nova, discussões surgem e ainda falta um consenso específico sobre como devemos criticar os jogos. Por possuir uma lógica de produção massiva, videogames se tornaram uma expressão artística extremamente profusa e diversa. A variedade de exemplos de joguinhos e seus diferentes gêneros, estilos e narrativas soam como grandes barreiras para se buscar ter uma padronização na crítica desta mídia. Além disso, qual seria de fato o papel da crítica especializada para os videogames: servir como guia de consumo ou extrair uma ideia de cada um destes produtos? Outra grande questão é com relação ao autor destes jogos: quem é? As produtoras de videogame, o game designer, o diretor, o roteirista? Por ser um produto cuja realização normalmente ocorre de maneira setorizada, realizar uma afirmação quanto a isso parece inalcançável.
Apesar de não podermos afirmar com exatidão quem é o principal responsável pela idealização e produção de um jogo, podemos obter certo jogo, experimentá-lo e analisá-lo. Por isso, dentre estes inúmeros debates sobre como falar de um videojogo, observá-lo através de uma unidade narrativa me soa o mais correto. Inspirado pelas provocações de Clint Horking e Matheus Fiore, que abordam esta questão da unidade em games, resolvi analisar Celeste através da busca pela consonância ludo narrativa, ou seja, entender este jogo enquanto obra única, com ideias e lógicas próprias e, baseado nisso, se dentro destes universos estas lógicas possuem verossimilhança entre si.
Similar à crítica cinematográfica, a crítica de um jogo através de sua unidade tem seu foco na narrativa deste produto e o impacto dela em quem está observando esta história. Analisar um jogo pela sua unidade exclui a setorização da resenha sobre jogos em elementos soltos e trabalha estes elementos como parte de um todo. Desse modo, a jogabilidade existe em prol da narrativa, a trilha sonora, o design do mapa e os gráficos também. Até mesmo a escolha do gênero é um elemento narrativo – tudo faz parte de um todo e esse todo é a narrativa.
A primeira chamada do trailer de Celeste sintetiza a sua história. A história desse jogo nada mais é do que a de uma jovem-adulta que almeja chegar ao topo de uma montanha. No entanto, sua narrativa abraça tanto o lado literal, quanto metafórico desta montanha. Do ponto de vista literal, Celeste é apenas uma montanha que abraça viajantes de diversos lugares do mundo em busca de uma fuga da cidade grande. Contudo, se abstrairmos um pouco nosso pensamento, podemos observar que a montanha simboliza os obstáculos que os personagens que a visitam precisam superar.
Explorando essa metáfora, o jogo dá propriedades místicas ao monte, tornando-o capaz de materializar todas as inseguranças de seus viajantes, obrigando-os a encarar seus próprios medos. Ao longo da narrativa, Theo, um viajante que acompanha nosso avatar por Celeste, é transformado em uma pedra de gelo, que o impede de se conectar às redes sociais e ganhar seus likes diários, Senhor Oshiro, dono de um hotel local, se transforma em um fantasma devido à solidão causada pelo insucesso de seu empreendimento e Madeline (ou o nome que você quiser colocar), a personagem que controlamos, ao se encarar em um espelho durante a fase 2, liberta uma doppelganger maligna dela, cujo principal objetivo é impedi-la de chegar ao topo. Portanto, a história do jogo é sim sobre escalar uma montanha, mas a sua narrativa tem muito mais a dizer: Celeste é um jogo sobre ansiedade. Todos os problemas citados no parágrafo acima são frutos desta doença e cada um dos personagens precisa lidar com ela de alguma forma.
Vivemos um mundo cada vez mais pulsante e frenético, o modo de vida contemporâneo tornou as pessoas ansiosas e o grande fluxo de informações potencializa nossos conflitos internos e inseguranças, afinal, na sociedade capitalista moderna, qualquer descanso ou desligamento é sinônimo de fracasso. Graças a esse modo de vida intenso, nos forçamos a viver em movimento constante e precisamos sempre estar ligados, por isso, se exibir nas redes sociais é sinônimo de estar vivendo, a solidão e o hotel vazio em baixa temporada é um fracasso e a síndrome do impostor que cisma em nos dizer que não somos capazes acaba nos atacando e gerando tormento. Portanto, ciente que a ansiedade é o mal do século em que vivemos, Celeste busca apresentar isso através dos dilemas de seu microcosmo de personagens.
O gênero de plataforma como escolha para o jogo já trabalha bem a questão da ansiedade. Popularizado na era dos videogames com processadores de 8 e 16 bits, esse gênero consiste em mapas desenvolvidos com obstáculos que devem ser vencidos. Com uma dificuldade crescente, as fases vão se tornando cada vez mais complexas e os obstáculos mais difíceis de atravessar, por isso, normalmente esse gênero necessita da memorização de padrões e de diversas tentativas e erros para serem completados. Celeste é um jogo relativamente curto, com poucas fases, mas graças ao incremento de desafios, um jogador mais casual pode perder boas horas para passar de uma fase. Essa escolha de gênero é certeira para lidar com a ansiedade, pois os erros seguidos podem nos causar aflição, mas a recompensa de passar de uma fase acaba sendo retorno o suficiente para seguirmos jogando.
Para complementar a ansiedade do gênero de plataforma, o design dos mapas do jogo possui um detalhe interessante em seus formatos: em momento calmos, são quadrados e estáticos, apenas com os inimigos se movendo, mas, em momentos de maior tensão, tornam-se contínuos e alongados. Morrer em um jogo plataforma normalmente te obriga a retornar ao começo da fase e com Celeste isso não é diferente, cada morte te retornar para o início do quadro, te obrigando a refazer tudo. Assim, o formato do mapa induz o nervosismo do jogador, que precisa passar por tudo sem cometer nenhum erro.
Falando na era dos poucos bits, o design de Celeste emula os jogos desta geração e inclusive há um mini game jogável em 8-bits. A escolha estética do jogo é para evocar a nostalgia, mas também possui um significado maior: comunicar com um público alvo-específico. Frisando que a protagonista do jogo é uma jovem-adulta que pode ser nomeada por nós no começo da narrativa, o jogo da Matt Makes Games insinua o público com quem ele dialoga: millenials – considerados a geração mais ansiosa – que cresceram jogando videogames. Por ser uma desenvolvedora independente, a produtora conta com profissionais desta geração e buscam dialogar um público similar. Essa relação de proximidade de faixas etárias entre desenvolvedores e jogador demonstra que ambos se relacionam com o problema geracional que vivemos. Enquanto isso, a ansiedade e a possibilidade de escolher o nome da protagonista aproxima o avatar do jogador.
Em contrapartida ao visual nostálgico do jogo, a trilha sonora de Celeste é fruto da contemporaneidade. Apesar de simular trilhas de jogos de taxa de bits reduzida, as músicas de Celeste contam com uma infinidade de particularidades e variações em seu leque. Tendo o piano como instrumento principal da trilha da protagonista, o jogo mescla as cordas com sintetizadores carregados, baterias bem pontuadas e até vozes sussurradas ao fundo. Há uma flutuação no ritmo da trilha, que acompanham as oscilações constantes de humor da protagonista por causa de sua condição mental. Em momentos mais calmos, o jogo de 2018, parece absorver a moda do lofi e abraçar a quietude e a simplicidade, porém, durante os ataques de pânico e momentos de conflito, a trilha sonora reflete a ansiedade da protagonista e insere camadas bem aflitivas e desnorteantes. Há um momento muito especial em uma cutscene da fase 4: quando a personagem principal aprende a controlar a ansiedade e a trilha mescla sons de respiração com toques suaves de piano para se substituírem o sintetizador denso e conflituoso que exprimia sua aflição.
Aprender a controlar a ansiedade é a mensagem vital para a narrativa de Celeste. Ao longo de um percurso de altos e baixos, o jogo extrai de momentos pontuais de calmaria diálogos corriqueiros que evidenciam a necessidade de se controlar e encontrar a paz interior. Só é possível sobreviver no mundo moderno se soubermos entender os nossos conflitos. Com isso, o desfecho do jogo só pode ser um: encontrar a paz interior. Todos os conflitos do jogo ocorrem entre a protagonista e sua contraparte. A doppelganger de Madeline nada mais é do que a personificação das inseguranças dela e como estes sentimentos servem de barreira para que a protagonista alcance o cume de Celeste. Através de uma bela metáfora, o jogo encontra sua resolução pela união entre estas partes após um momento de diálogo entre as duas, colocando ego e alter ego frente a frente, expondo a necessidade de aprender a conviver com a ansiedade e os problemas advindos dela.
Com uma carga sentimental profunda e um esmero enorme em sua produção, Celeste é um jogo que exala ansiedade em todos os elementos de sua narrativa. A sua capacidade de imersão é tanta, que ele é capaz de trazer todas as gamas de emoções que busca elucidar. O game possui ciência de seu público e estabelece em sua forma e seu conteúdo maneiras de ressoar não só com este, mas com quem quiser experimentar. Portanto, se Clint Horking criticava a dissonância ludonarrativa de Bioshock como um dos problemas do jogo, acredito que o autor veria Celeste como um contraponto capaz de atingir (ou pelo menos chegar bem perto de) uma consonância ludonarrativa.