O saudoso Carlos Oscar Reichenbach Filho (1945-2012), nome de primeira importância para a história do cinema brasileiro, recebeu uma homenagem digna na Mostra de Cinema de Gostoso desse ano, que ocorreu entre 10 e 14 de março. Dois títulos raros de sua filmografia estiveram em cartaz no evento, estando portanto disponíveis para todo o Brasil – afinal, como tantas outras mostras e festivais desde o início de 2020, a Mostra de Gostoso de 2021 foi realizada através da internet, em uma readequação para os tempos da pandemia de COVID-19.
“As Libertinas” (1968) e “Audácia! – A Fúria dos Desejos” (1970) ocupam uma posição basilar na obra de Carlos Reichenbach, o famoso Carlão. Estão entre os primeiros longas que o diretor assina, ainda que não integralmente – ambos os filmes são, à sua maneira, episódicos. Em “As Libertinas”, o cineasta é responsável por um entre três segmentos, sendo os outros dois comandados por João Callegaro e Antônio Lima; em “Audácia!”, divide os créditos com o mesmo Antônio Lima.
Os dois filmes foram digitalizados em 2020, segundo uma cartela inicial na projeção, “por iniciativa da Heco Produções para o longa-metragem documental O Bom Cinema“. Assim sendo, a iniciativa da Heco Produções deve ser louvada, tendo permitido que os dois longas de difícil acesso fossem digitalizados e amplamente divulgados em exibição digital, saciando a curiosidade dos espectadores que até então não podiam ter acesso a essa parcela da filmografia de Carlos Reichenbach. Também deve ser posto aqui, acima de tudo, que os dois filmes só existem hoje – e só puderam ser digitalizados e exibidos na Mostra de Gostoso – porque foram devidamente preservados na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, que segue se defendendo e tentando sobreviver em meio a um desmonte ativo à instituição, que inclui suspensão do repasse anual de verbas para a Cinemateca, dos salários de seus trabalhadores e demissão geral dos mesmos, tudo promovido impiedosamente, desde 2019, pelo Governo Federal vigente.
Retornando aos filmes em questão e à forma dos mesmos, é possível dizer que, se hoje é visto com menos frequência em meio ao novíssimo cinema brasileiro, o formato filme-antologia foi, de certa maneira, uma febre nos anos 1960, sobretudo no meio em que Carlão circulava à época: a Boca do Lixo, região do centro de São Paulo que servia como ponto de encontro entre jovens cineastas e técnicos unidos sob o propósito único de fazer cinema a qualquer custo, com poucos recursos e muita inventividade.
O formato antológico era uma verdadeira escola para os cineastas da Boca, permitindo que eles se aperfeiçoassem no fazer cinematográfico dirigindo filmetes não muito longos, mas que ainda assim compunham um longa-metragem, formato de maior prestígio do que o curta ou o média-metragam. Reichenbach ainda faria outras incursões no formato mesmo após firmar-se como diretor de longas inteiramente seus, como no “As Safadas”, de 1982, que também conta com episódios de Inácio Araújo e Antonio Meliande.
Nos filmes da Boca nessa fase inicial, entre os anos 1960 e 1970, é possível ver com clareza o contraste entre duas facetas de um mesmo cinema: uma, a do experimental em linguagem e discurso, a outra, a da exploração do sexo enquanto elemento estético. Se a primeira faceta é atrelada aos cineastas que assinam a direção desses filmes, a segunda pode ser atribuída aos produtores que viabilizavam o cinema da Boca e impunham o elemento sexual como uma exigência para tornar esse cinema vanguardista algo vendável.
Como exemplo, pode ser levada em consideração a imagem de Antônio Pollo Galante, célebre produtor da Boca do Lixo e objeto do documentário “O Galante Rei da Boca”, de 2003. Nele, Reichenbach depõe dizendo que os diretores tinham carta branca para fazer o que quisessem, contanto que espalhassem, pelos filmes, uma determinada quantia de sequências de sexo, nudez ou seminudez. Também é dito que Galante vendia os filmes para o circuito exibidor das salas de rua mais humildes, focadas na classe trabalhadora (os famosos “cinemas poeira”) unicamente através do título. Portanto, não é de se estranhar que, da década de 1960 aos anos 1980, Carlos Reichenbach tenha em sua obra, para além dos já mencionados “As Libertinas”, “Audácia!” e “As Safadas”, títulos como “Sede de Amar” (1978), “A Ilha dos Prazeres Proibidos” (1979), “O Império do Desejo” (1981), “Amor, Palavra Prostituta” (1982) e “Extremos do Prazer” (1984).
A presença desse forte teor sexual no cinema da Boca, intensificado após Rogério Sganzerla emplacar seu “A Mulher de Todos” (1969) e solidificar Helena Ignez no seu já consagrado posto de musa daquela geração, foi gradualmente aumentando com o passar dos anos até que o grosso das produções feitas na região passou a ser composto por fitas de erotismo softcore (dentre as quais as infames pornochanchadas) ou mesmo de pornografia explícita. Não é o caso, no entanto, dos filmes de Carlão. Pelo contrário. Ainda que boa parte da sua filmografia até os meios da década de 1980 seja fortemente influenciada pelas demandas que eram exigidas pelos produtores da Boca, seu cinema, desde cedo, sempre foi muito mais preocupado em, através da força do discurso, dar vazão à verve intelectual do diretor (um verdadeiro polímata) e em lidar com elementos de linguagem nas imagens, com liberdade e beleza. “As Libertinas” pode, se tanto, ser visto como uma protopornochanchada de vanguarda, como “A Mulher de Todos”.
Se o segmento de Carlão em “As Libertinas” (o mais longo dos três, com cerca de quarenta minutos de duração) é passível de ser lido como um filme simplório, do qual o próprio diretor dizia não gostar, é porque trata-se realmente de um esforço primário de um realizador até então habituado ao formato do curta-metragem (ou a trabalhar como técnico nos projetos dos amigos – hábito universal entre a geração da Boca do Lixo). Ali ele estava dando o próximo passo, tentando algo maior. Ainda que lidando com uma narrativa simples (que por si só é paródia de dramas existenciais numerosos na época, como os filmes de Walter Hugo Khouri), Carlão já estabelece dinâmicas de personagem que, reformuladas, estariam presente em filmes posteriores, além de conseguir capturar imagens impressionantes que partem da sua ótica de fotógrafo e já dão pistas promissoras de feitos vindouros sublimes, como determinados planos de “Filme Demência” (1986) ou “Falsa Loura” (2007). Talvez o que “As Libertinas” tenha de mais arrojado em seu formato (e que o une de maneira mais evidente ao movimento do Cinema de Invenção) seja o joguete de “filme dentro do filme” que empreende – os segmentos principais são precedidos por uma breve vinheta que mostra um homem convidando mulheres na porta de um cinema para assistir a um filme justamente intitulado “As Libertinas”. Algo parecido existe no “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969) de Júlio Bressane.
Todo esse ambiente da Boca do Lixo responsável pela maneira como “As Libertinas” é construído é registrado, de maneira documental, no primeiro segmento de “Audácia!”, em verdade um prólogo para o restante do filme. Em pouco mais de dez minutos, Reichenbach faz uma rica crônica da Boca, que apropriadamente abre com uma narração em off que remete diretamente a “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla, enquanto a câmera flutua por entre as ruas da região. O que segue parece ser uma versão do curta “Cinema Novo” (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, mas focada no Cinema de Invenção paulistano: se a narração por vezes é didática, as imagens são de uma preciosidade inestimável, constando entre as melhores a registrarem o cotidiano na Boca do Lixo daquele período, em pé de igualdade com o curta “Boca do Lixo Cinema” (1976) de Ozualdo Candeias. Sganzerla, Candeias, Luis Sérgio Person e o próprio Carlão são mostrados frequentando os mesmos lugares, conversando; os produtores da Boca fecham acertos para os próximos filmes pelo telefone; Maurice Capovilla é visto dirigindo sequências de sua magnum opus “O Profeta da Fome” (1970); José Mojica Marins, que atua no longa de Capovilla, dá um breve depoimento em formato de entrevista.
Esse prólogo já seria o suficiente para fazer de “Audácia!” sólido enquanto filme, mas Carlão e Antônio Lima vão além. O segmento seguinte, “A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo”, é uma ficção irreverente à moda da primeira fase do Cinema de Invenção. Nele, Reichenbach lida de maneira metalinguística com o próprio fazer cinematográfico ao mostrar Paula Nelson (Carlão reaproveitaria o nome da personagem em outros projetos), uma cineasta, tendo que recorrer à Boca do Lixo para finalizar seu filme e batendo de frente com os produtores que exigem a inserção de todo um elemento sexual nas imagens para que viabilizem o projeto. O segmento final, dirigido por Antônio Lima, segue a mesma linha de ser um filme marginal que fala sobre fazer filmes marginais. Seu momento mais digno de nota está em um apanhado quasidocumental sobre a história recente do cinema brasileiro, que faz uma recapitulação rápida sobre o Cinema Novo e o Cinema de Invenção, movimentos dissidentes que existem em uma mesma linha do tempo, através da sobreposição de fotos still embaladas por narrações em off.
O discurso inflamado do Cinema de Invenção, presente no prólogo sobre a Boca e que acaba “vazando” para a história de Paula Nelson, parece ser cortesia do cineasta, crítico e teórico Jairo Ferreira, creditado aqui como responsável por “diálogos adicionais”. Algumas das impactantes frases entoadas pela narração de “Audácia” no prólogo e colocadas na boca dos personagens no restante do filme são extremamente remetentes a trechos do que Ferreira escreve em “Cinema de Invenção”, livro que publica em 1986 com um coletânea de textos que ajuda a definir o movimento dentro dos estudos relativos ao cinema brasileiro. O discurso (do livro e do filme) é contagiante, cheio de vida e figura dentre as perspectivas mais interessantes acerca do fazer cinematográfico no Brasil.
Apesar de não dever em muito qualitativamente para outras produções do Cinema de Invenção daquele mesmo período, “A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo” não possui o poder de síntese e o brilho da introdução sobre a Boca do Lixo que a antecede, e está longe de figurar entre os melhores trabalhos de Reichenbach nesse momento inicial de sua carreira (este sendo, de maneira praticamente indisputada, o “Lilian M.: Relatório Confidencial”, de 1975).
Essa merecida homenagem a Carlos Reichenbach promovida pela Mostra de Gostoso foi apenas uma das grandes reverências feitas à história do cinema brasileiro pelos curadores. Dentre as outras, podem ser mencionadas as exibições do “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos; “Claro”, de Glauber Rocha; “O Bravo Guerreiro” de Gustavo Dahl; “A Vida Provisória” de Maurício Gomes Leite e do raríssimo curta “Cinemateca Brasileira”, de Ozualdo Candeias. Em meio os eventos dos últimos dois anos a promoverem mostras retrospectivas, a de Gostoso definitivamente figura entre os de melhor e mais respeitosa curadoria.