First Cow: A Primeira Vaca da América

First Cow: A Primeira Vaca da América

Cinema dos despossuídos

Wallace Andrioli - 10 de junho de 2021

First Cow: A Primeira Vaca da América é um filme sobre os limites do sonho americano enquanto realização intrinsecamente ligada ao capitalismo. O contexto em que sua história se passa é o da marcha para o oeste, no século XIX, logo, de exacerbação do discurso dos Estados Unidos como terra das oportunidades. Seus dois protagonistas, um homem branco pobre e um imigrante chinês (também pobre), a princípio encarnam e são movidos pela ideia de que o trabalho e a imaginação são motores suficientes para o sucesso naquela sociedade. Mas a diretora e co-roteirista Kelly Reichardt coloca um obstáculo no caminho deles que reconfigura relações e necessidades e permite a ela se posicionar politicamente com clareza, ainda que sem abandonar a delicadeza e a discrição que lhes são características.

É em si admirável a compreensão de Reichardt da precariedade do mundo representado em seu filme. Essa se manifesta não só nos vários momentos em que os protagonistas Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) realizam tarefas cotidianas em condições bastante difíceis, como no próprio problema com o qual eles têm que lidar: a impossibilidade de serem donos da vaca fornecedora do leite que é matéria-prima do seu empreendimento. A ausência da posse dos meios de produção como questão central para os trabalhadores, nó principal do capitalismo – e que Cookie e King-Lu, indivíduos fragilizados numa sociedade organizada segundo a lógica da brutalidade, não conseguem desatar.

Mas esse problema macro é apresentado aqui numa perspectiva micro, atenta à dimensão até meio patética das relações sociais nesse sistema econômico. Uma vaca que se torna fonte de renda, possível instrumento de concretização do sonho americano, mas que também é alvo de uma disputa de vida e morte. O animal que vale mais que dois humanos. Na verdade, Reichardt evita essa dicotomia, já que o valor atribuído à vaca não está no desenvolvimento de algum tipo de afeto antropomorfizante, mas em seu potencial produtivo, gerador de lucro. Mais que isso: em First Cow, ela encarna a propriedade privada dos meios de produção, elemento estruturante do capitalismo, que se sobrepõe a qualquer impulso humanista.

Reichardt filma, com seu habitual minimalismo, espaços, personagens e ações caracterizados pelo mínimo. Não há qualquer evocação épica como, por exemplo, em O Regresso (2015), filme ambientado num universo próximo ao de First Cow. Mesmo a riqueza do dono da vaca (Toby Jones) é precária – mas suficiente para ele exercer domínio sobre a região. A câmera da diretora permanece sempre discreta, mais propensa à observação distanciada que à dramatização excessiva. Despida de intenções grandiloquentes e maneirismos visuais, Reichardt olha frontalmente para uma realidade bruta sem apelar para brutalismos estéticos ou dramáticos. Ela arquiteta um naturalismo fluido, em que doçura e violência, amizade e perversidade convivem como partes de um mesmo todo.

O distanciamento proposto por Reichardt não configura frieza. A atenção dispensada aos momentos prosaicos dos protagonistas, constituintes tanto de seu trabalho (a ordenha clandestina da vaca, a feitura e a venda do biscoito) quanto de uma proximidade afetiva crescente, torna-os representantes adoráveis de um grupo social com o qual a diretora sempre simpatizou. Com First Cow, Reichardt segue fazendo um cinema dos despossuídos, cuja principal manifestação em sua obra ainda é Wendy e Lucy (2008), outro filme em que as adversidades decorrentes do capitalismo interferem violentamente numa relação de amizade.

Por fim, o começo. First Cow tem início no presente, quando uma mulher brincando com seu cachorro (referência a Wendy e Lucy?) acidentalmente encontra dois esqueletos humanos, enterrados lado a lado. Essa sequência, posta no todo da narrativa, reforça o comentário sobre a pequenez das intrigas humanas, inevitavelmente consumidas pelo tempo e pela terra. O efeito é semelhante ao das palavras que encerram Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick: “foi no reino de George III que esses personagens viveram e brigaram; bons ou maus, bonitos ou feios, ricos ou pobres, eles todos são agora iguais”. Nada sobrevive, logo, nada importa realmente.

Mas, ao mesmo tempo, First Cow inverte essa lógica. Os vestígios do passado que abrem o filme indiciam a existência de afetos positivos entre a dupla há muito morta. O amor e a amizade, apesar de fisicamente destruídos pelo capitalismo, deixam marcas no mundo, agem como mensagens em garrafas lançadas ao mar, mesmo que elas só venham a ser descobertas séculos depois. Ao cinismo absoluto de Kubrick, se contrapõe o realismo agridoce de Reichardt.

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