Como uma continuação, O Homem nas Trevas 2 possui uma questão fundamental deixada pelo seu antecessor que precisa ser resolvida imediatamente pela dupla Rodo Sayagues (diretor e roteirista) e Fede Alvarez (roteirista e diretor do primeiro longa), com o potencial de macular todo o resto do projeto. O que fazer quando seu personagem principal é o vilão do longa anterior, assumidamente um assassino, estuprador e sequestrador? São inúmeras as possibilidades de caminhos que esta encruzilhada leva. Primeiramente, o filme será moldado a partir de que relação entre espectador e protagonista? Será o da aproximação e empatia por esse homem; o do olhar neutro e afastado; ou o de condenação e repulsa? Segundamente, dentro da narrativa, como a questão dos seus crimes irá reverberar para ele? Haverá algum enfrentamento psicológico (que pode ir tanto para uma redenção cristã quanto para um punitivismo sádico), moral ou legal; uma humanização dentro de um contexto socioeconômico que faça com que se “entenda” suas ações; ou um simples esquecimento inconsequente de seu passado? De todas as variáveis exemplificadas (certamente não as únicas), Sayagues e Alvarez parecem escolher as mais infelizes.
Lançado em 2016, O Homem nas Trevas tinha como tema um estudo sobre as diferentes esferas do Mal, ambientado em uma Detroit arrasada economicamente, no qual o espectador era influenciado a ir mudando de aliança a partir de uma ponderabilidade sobre qual dos dois núcleos de personagens era menos repulsivo. Em um jogo de gato-e-rato dentro de um subgênero de terror, o home invasion, não se tratava de vilões invadindo a casa de um mocinho, mas de pessoas ruins fazendo uma maldade com alguém pior ainda que eles. De início, a narrativa apresentava jovens ladrões invadindo a casa de Norman (Stephen Lang), um ex-militar, idoso e cego, para roubar o dinheiro do seguro vindo do recente falecimento de sua filha. Ou seja, até este momento, as informações dadas ao espectador levavam a uma maior empatia com o vulnerável Norman, que passa a perseguir os jovens até a morte em uma defesa de sua propriedade, ainda que de maneira progressivamente brutal e sádica. Entretanto, uma reviravolta revela que o homem mantinha em cárcere privado, dentro de sua casa, a mulher que matou sua filha, além de tê-la engravidado, por estupro, numa visão punitivista doentia de que ela merecia lhe dar uma nova criança através do sofrimento. Obviamente, esta nova informação é a ruptura definitiva para uma nova mudança de lado daquele que assiste o filme, que botará na balança as ações dos jovens contra a de Norman e perceberá que as segundas são muito mais doentias.
Já o lançamento O Homem nas Trevas 2 é similar em sua estrutura de reviravoltas. Oito anos depois, Norman aparece com uma filha adotiva e não há menção aos seus feitos do primeiro filme. Novamente, ele precisa lidar com uma invasão em sua casa, mas de ex-militares treinados que tentam levar a menina por motivos ainda desconhecidos. Em um primeiro momento, a trama constrói emocionalmente a relação paternal para que o espectador se alie ao protagonista-estuprador, que quer proteger a menina desses homens piores ainda. Em seguida, duas reviravoltas acontecem. A primeira traz informações reveladoras do passado, que faz com que o espectador entenda as ações dos ex-militares. Todavia, há também uma virada posterior, que anula a anterior e consolida de vez a aliança do espectador à Norman, novamente. Diferentemente do primeiro filme, cuja questão moral é complexificada a partir de uma reviravolta, a continuação usa este artifício para simplificá-la. Neste sentido, é muito evidente que não se busca um embate entre o Mal e um estudo sobre a violência em um microcosmos como no primeiro, mas apenas uma heroificação de Norman contra o grupo de invasores, uma vez que não há uma continuidade nas reflexões e consequências sobre os seus atos, com as tomadas de decisão de roteiro e direção indo majoritariamente no sentido de exaltar suas virtudes.
Talvez os roteiristas Rodo Sayagues e Fede Alvarez sejam seres humanos mais evoluídos e com um maior senso de perdão do que a pessoa que escreve este texto, mas incomoda como o filme se estrutura ao redor de uma jornada de redenção inconsequente de seu protagonista enquanto figura paterna e sensível aos animais, forçando goela à baixo, situações que gerem identificabilidade com o mesmo, ainda que nunca consiga lidar frontalmente seus atos do filme anterior. Aliás, sendo mais preciso, o problema não é retratar uma redenção de um estuprador, mas achar que é possível fazer isso sem confrontamento, autoreflexão e arrependimento. Afinal, existia material suficiente no universo da franquia para fazer aprofundamentos mais complexos e ambíguos sobre suas ações, tanto geograficamente — o contexto socioeconômico de Detroit como propício ao surgimento da violência — quanto historicamente — a disputa ser entre ex-militares de uma guerra fracassada e que trazem sua violência e traumas para dentro de casa —. Nada disso, no entanto, é mais do que um mero arranhão de roteiro.
Por outro lado, as apelações para a identificabilidade são muitas. Obviamente, se o objetivo é fazer com que o público se posicione ao lado de um personagem estuprador, é preciso criar inimigos iguais ou “piores” ainda, então o que não falta são cenas mostrando o assassinato de mulheres, cachorros e conversas sobre infanticídio, para não deixar dúvidas que não há moral nenhuma naqueles homens (com exceção do capanga latino, claro, que em um ponto chave surge como contraponto de caráter frente a decadência moral norte-americana). No mesmo sentido, a direção de atores e a caracterização dos vilões vai para uma tendência caricata, com histrionismos no tom de voz e todos com aquele olhar de psicopata virado para cima, sedimentando visualmente que se tratam de meros sádicos sem a menor complexidade. Novamente, não há problemas em si na criação de vilões unidimensionais a priori, mas sim porque isso existe como uma muleta covarde para gerar identificação espectatorial com Norman sem precisar lidar com que se lide com problemas. Enquanto isso, as sequências são construídas com cuidado para mostrar o humanismo do protagonista, como na sequência envolvendo o salvamento do cachorro do incêndio.
Sobre as implicações imagéticas desta questão, há um breve momento em que a direção de Rodo Sayagues reflete sobre Norman enquanto uma figura ambígua, ainda com resquícios de vilanismo. Quando sua filha é testemunha de uma execução brutal contra um dos invasores, seus gritos ecoam sem sucesso para que ele pare com os golpes na cabeça do homem já morto, que por sua vez só se encerram quando se explode em pedaços. Há, neste sentido, uma contraposição, através da montagem, do impacto gráfico da cabeça desfigurada e o prazer no rosto Lang com aqueles golpes, ao horror nos olhos de sua filha. Esse, talvez, seja o único momento em que menina e espectador são lembrados rapidamente pela direção de que o embate de O Homem nas Trevas 2 são sobre indivíduos violentos e igualmente adoecidos que lutam por uma criança que só queria uma vida normal, o que evidentemente é ofuscado por todas as outras direções tomadas.
Por acaso, se existir algum espectador que queira ignorar toda a moralidade que vem desde o filme antecessor e fingir que está vendo uma nova história, apenas sobre um ex-militar cego que precisa lutar para salvar sua filha, ainda assim O Homem Nas Trevas 2 também poderá frustrar. Enquanto o longa de 2016 construía suas set pieces de suspense e ação mais inteligentemente em torno do design de som (como o protagonista é cego, sua movimentação é dependente dos barulhos que ele escuta) e o respectivo silêncio em momentos chaves, a continuação faz dessas questões meramente acessórias, enquanto o maior enfoque de Sayagues é na elaboração das execuções sádicas de Norman (as resoluções da cola, do gás e do flare são inteligentes, há de admitir). Como exceção à regra, há uma sequência que é a mais elaborada em termos mise-en-scène, no que tange ao uso inteligente do silêncio e das noções de espacialidade da casa, que é o da fuga da menina pelos cômodos da casa. Inclusive, indaga-se os motivos que levaram os roteiristas a não adotarem mais momentos pelo ponto de vista da garota e que trabalhassem em cima do treinamento que ela recebeu do pai ao longo dos anos, como a primeira cena do longa leva a crer que acontecerá. Igualmente, ter a criança como a verdadeira protagonista de O Homem nas Trevas 2, fazendo de Norman uma figura secundária mais afastada que ensina táticas de sobrevivência e ainda é uma figura questionável, resolveria em boa parte sua questão moral, ao passo que investiga como uma criança reage diante daquela violência que ela não escolheu participar, mas ainda sim foi incluída no meio.