À l’abordage

À l’abordage

Conto de verão

Nicholas Correa - 14 de janeiro de 2022

No começo, pode parecer infrutífero comentar sobre um filme tão transparente em intenção e execução quanto À l’abordage de Guillaume Brac; uma crônica sobre um rapaz, Félix, que viaja para o interior da França, na companhia de um amigo, Chérif, e de um caroneiro, Édouard, para se encontrar com uma garota, Alma, que ele conheceu brevemente durante uma noite. Essa premissa sucinta permite que o filme explore a graciosidade do casual, de situações simples que se desenvolvem de maneiras imprevistas. Dessa viagem o filme parte para uma sucessão de momentos de graça, incidentes, frustrações e indagações sobre amor e comprometimento, algo não muito distante do expediente do ciclos das “Comédias e Provérbios” ou dos “Contos das Quatro Estações” de Éric Rohmer (ainda que os filmes de Brac não tenham a mesma preocupação moral e os mesmos personagens intelectualizados de Rohmer). Mas é sob a aparência do simples que reside um trabalho rigoroso de atenção e depuração para que se aprecie o sublime desses momentos casuais, dos mais alegres aos mais amargos.

O título, À l’abordage (ao embarque), é aludido em um breve momento em que o trio assiste uma apresentação de uma artista de rua fantasiada de pirata, o único momento autorreferente no filme todo. O chavão resume sucintamente a premissa da viagem de seus personagens, o filme lança seus personagens ao incerto, ao risco, à aventura no fim das contas. O tempo de folga, de ócio e de liberdade que é dado ao grupo revela-se uma ocasião para que, em contrapartida, o comprometimento e o senso de finalidade e objetivo de suas relações se torne evidente. A viagem torna-se o contexto ideal para um contraste revelador.

Cada momento mais afável ou cômico, como uma cantoria em um karaokê ou uma provocação com um apelido, é circunscrito por uma amargura cada vez mais sentida, com a perspectiva da frustração e do fracasso amoroso acompanhando cada interação. Ao longo do filme também se instala uma tensão racial entre Félix (Éric Nantchouang) e Chérif (Salif Cissé), dois jovens parisienses negros, e as pessoas que eles encontram durante a viagem. Essa tensão, por mais que não desemboque para um conflito aberto, permeia as relações dos dois personagens, como se vê nas reservas de Alma com o aparecimento repentino de seu par romântico em sua cidade natal ou em momentos pontuais, como no instante em que o personagem de Nicolas Pietri se aproxima de Félix lhe perguntando se ele tem um pouco de erva. Apesar disso tudo, o filme mantém um tom esperançoso e oferece uma possibilidade de resolução para as angústias que afloram durante a jornada da dupla.

Tanto os momentos mais tenros quanto os mais desoladores que surgem durante a viagem parecem surgir como frutos de uma mesma abertura ao inesperado, de um mesmo caminho incerto no qual os personagens adentram. Os meios que Brac utiliza para retratar seus viajantes dão a tônica desse processo acidentado que os atravessa. Vê-se em À l’abordage uma atenção para com a ambientação que está presente em boa parte de tradição realista do cinema francês. Seus planos frequentemente dividem a atenção entre dois sujeitos ou mais.  Mesmo quando o enquadramento isola um personagem de outro, a posição de um sujeito dentro do espaço cênico é sempre deixada às claras, o quadro raramente se fecha em um ponto pequeno da cena. Em outras palavras, o plano se encarrega de mostrar relações, entre vários sujeitos ou entre sujeito e espaço. Novamente, assim como Rohmer, o ambiente e o deslocamento possuem um lugar central no drama. Brac permite que a topografia e algumas peculiaridades daquela região interiorana da França, um parque aquático, cursos d’água em um cânion, sejam sentidos como parte da via dupla de ócio e conflito que fundamenta o filme.

À l’abordage, apesar dos percalços e dos momentos mais desoladores, consegue transmitir uma visão otimista em se tratando das relações humanas que representa. Próximo da despretensão de Chérif com a viagem, Brac realiza um filme alegremente entregue à profusão de emoções e de novas paisagens. Como um jantar às cegas, o filme é um convite à exploração, difícil de categorizar ou de definir por tratar do que é incerto, ambíguo e, acima de tudo, pulsante nas relações.

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