Existe um ideal particular que a maioria dos filmes de reconstituição de época nos informa. A representação nos desloca do presente e nos guia a um passado até então irrecuperável, nos coloca diante de uma época específica cuja sensibilidade era outra. O pacto que esses filmes propõem é um exemplo extremo da entrega do público à poderosa aparência de verossimilhança do cinema. Mas se esse tipo de filme oferece um milagre representativo, a transmutação do presente em passado fílmico, o que também não faltam são artistas céticos quanto à possibilidade de abordar a história de uma maneira genuinamente inocente. No caso da história alemã, é mais do que compreensível que esse ceticismo apareça de forma bastante evidente. Dominik Graf realiza Fabian – O Mundo Está Acabando, com quase um século de distância do material que lhe deu origem e, no caso deste filme, seria difícil analisá-lo sem uma consideração sobre essa distância. O escritor e jornalista Erich Kästner publicou Fabian – Die Geschichte eines Moralisten (Fabian – A história de um moralista) em 1931, nos últimos momentos da República de Weimar, antes do Terceiro Reich mostrar suas facetas mais monstruosas. A adaptação de Graf é o segundo tratamento cinematográfico do livro, com uma primeira adaptação realizada em 1980, ambas feitas após o horror que se seguiu na Alemanha e no resto da Europa. Desconsiderando o conteúdo do romance de Kästner, o fato é que, por meio de alusões ao que se seguiu à escrita do livro e ao próprio devir da história, o filme parece deliberadamente colocar a sensibilidade da narrativa sobre sua época, o início dos anos 1930, em curto circuito com o conhecimento histórico da contemporaneidade.
A Berlim de Fabian – O Mundo Está Acabando é marcada pelo desemprego, pela promiscuidade da vida noturna, pelo embate político acirrado e pela reivindicação crescente de valores morais mais rígidos. O personagem titular, Jakob Fabian (Tom Schilling), é um ex-combatente da primeira guerra e redator publicitário que passa as noites ao lado de seu amigo intelectual Stephan Labude (Albrecht Schuch) vagando por bordéis. Em uma dessas ocasiões, conhece e se apaixona por uma aspirante a atriz, Cornelia Battenberg (Saskia Rosendahl). Fabian é um personagem emblemático dentro de sua época pelas suas convicções morais, mas também pela sua falta de propósito. Apesar de seus princípios, ele não vai atrás de uma causa ideológica definida. Com apego ao efêmero, ao presente que se furta constantemente, ele descreve a vida como uma viagem de trem com um destino incerto. As contradições do período e da figura trágica do protagonista se tornam ainda mais evidentes com o fantasma da primeira guerra que ainda era sentido na sociedade alemã e com o horror nazista que se anunciava.
O que se destaca no empreendimento de Graf é a sua aproximação desta realidade frágil cheia de figuras errantes, um mundo do qual não se pode mais observar com inocência e descomprometimento. Ao mesmo tempo em que o filme se vale de um material gestado naquele período incerto e caótico da Alemanha, ele deixa evidente sua consciência histórica sobre a época, vista como um período de transição e de instabilidade em níveis essenciais. Essa consciência não poderia ter sido apresentada de modo mais explícito no primeiro plano do filme: uma sequência que começa em uma estação de metrô da Berlim contemporânea e que termina na saída para a rua, desembocando no passado do personagem principal. Este primeiro plano é uma das poucas sequências onde se enxerga um esforço pedagógico claro no filme. O que se segue é um fluxo caótico de imagens, diálogos e narrações. Em poucos minutos um volume descomunal de informações e operações formais é atirado ao público, não só é apresentada um quantidade enorme de personagens e lugares como também é mostrado uso de várias mídias diferentes. Além de ser filmado majoritariamente em uma câmera de vídeo de alta definição (em formato 4:3), o filme também faz uso de uma câmera Super 8 em momentos pontuais e de imagens de arquivo da época. Além disso, o dispositivo é operado na mão, com os enquadramentos reagindo aos movimentos iminentes das cenas.
Se, por um lado, Fabian – O Mundo está acabando até pode ser caracterizado como um filme “experimental”, por outro, dificilmente seria o caso de chamá-lo de vanguardista. A torrente de operações formais do filme se contrapõe às referências artísticas que Labude e seus colegas modernistas propõem. O projeto estético do filme, tal como seu personagem titular, recusa um senso de finalidade essencial das coisas e possui uma vocação para o que é múltiplo e descontínuo. Mas, diferentemente de seu protagonista, assume um compromisso diante da história. A multiplicidade, a inconstância e a fratura que marcam a obra são carregadas de intenção. A República de Weimar, como vista no filme, é um período marcado por dois traumas, um pregresso e outro ainda por vir. O horror da primeira guerra que assola Jakob Fabian, assim como a tensão econômica e moral do país, junto ao horror do nazismo que se anuncia resultam em uma realidade que, do ponto de vista histórico, é duplamente fraturada. É um universo em que as assombrações não só se confundem como estão implícitas umas nas outras.
A consciência histórica de Graf não se distingue de uma consciência fundamental do ato de narrar, a narração como detentora de conhecimento, como uma ação que naturalmente encerra as coisas. Além do primeiro plano de temporalidade elástica e da presença cada vez maior das suásticas e dos camisas pardas, o primeiro encontro de Fabian com Cornelia representa outro momento de autoconsciência narrativa. O encontro dos dois em bordel é anunciado pela voz narradora com minutos de antecipação e, quando ele se dá, vê-se todo um relacionamento futuro implícito naquele momento. E nisso está o aspecto trágico dessas figuras: por mais que Fabian, na sua recusa pelos dogmas ideológicos, se aproxime da vida como uma viagem de trem sem pensar aonde desembarcar, esse trem invariavelmente encerra a viagem em algum lugar. Apesar de sua sensibilidade e consciência moral, Fabian segue a vida de modo vago e sua passividade chega a tal ponto que em um momento ele tem um cigarro roubado no meio de uma tragada e ele mal esboça uma reação. Cornelia vai gradativamente divergindo seus interesses com os do seu parceiro conforme ela corre atrás de sua carreira como atriz. Além dos dois, Labude, com opiniões políticas e estéticas firmes, também trava embates com o próprio ego e com a própria sanidade. O desgaste das relações entre os três e a falta de perspectivas diante do futuro sinaliza uma crise na vida privada e no senso de engajamento político daquele contexto.
O presente é um instante inescapável, mas ao mesmo tempo pouco estável. Em Fabian – O Mundo Está Acabando, o tempo presente é incontornável nos dois sentidos que o termo implica: ao mesmo tempo que não dá escapatória, é impossível de delimitar. É um instante assombrado pelo que foi e pelo que será, e por isso mesmo é descontínuo, fragmentado, um tempo que não oferece apoio suficiente. Uma estação de metrô na Berlim atual só pode fazer algum sentido hoje tendo uma outra cidade em retrospecto. Se por um lado essa noção do presente mobiliza um esforço elucidativo através da história, ela também leva a uma visão um tanto pessimista: a recusa aos dogmas e às teleologias oferece um horizonte de possibilidades, é um modo de abrir a vida à graça do risco e do fortuito, mas uma abertura implacável nesses moldes também pode levar a uma passividade perigosa. A República de Weimar e, presumivelmente, os livros de Kästner (que foram incendiados dois anos mais tarde) ganharam um outro sentido com o que se seguiu. No paradigma do filme não existe um retorno à inocência, uma leitura do período que consiga desconsiderar os precedentes que lá se instalaram. Graf busca apreender a contradição da sensibilidade errante de seus personagens, mas procurando também, paradoxalmente, um comprometimento genuíno com a história de seu país.