Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente

Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente

Animação reinventa o universo visual de Angeli sob suas próprias regras

Igor Nolasco - 31 de janeiro de 2022

E o meu medo maior é o espelho se quebrar

(João Nogueira / Paulo Cesar Pinheiro)

Criador e criatura. Quando o velho cartunista Angeli e o punk esfarrapado Bob Cuspe se veem frente a frente pela primeira vez, há entre os dois a barreira de um espelho. A escolha fílmica pode ter algo de telegrafável, mas no fim das contas era incontornável. Desde o começo de “Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente”, criatura é estabelecida como espécie de alter-ego extremo, desinibido do criador. Ainda assim, não é apenas nesse jogo de duplos que se alicerça o filme – há entre seus dois protagonistas uma espécie de relação paternal-filial, e freudianos diriam que é apenas natural que a “jornada” do personagem titular longa seja a da caça pela figura paterna na intenção de confrontá-la e talvez destruí-la. Mas analisar “Bob Cuspe” sob essa chave tão distanciada e polida seria uma atitude simplista e completamente inadequada, tendo-se em conta o espírito do personagem e de toda a obra de Angeli – tão basilar para o universo aqui apresentado que chega a ser surpreendente não encontrar o nome do desenhista nos créditos de roteiro, ao final.

Não é a primeira, segunda nem terceira vez que a obra de um dos integrantes da revista em quadrinhos contracultural “Chiclete com Banana” é adaptada ao cinema: Glauco, Laerte e o próprio Angeli já tiveram seus personagens e trabalhos transpostos à tela uma porção de vezes. E ainda assim, essa nova produção centrada em uma das figuras mais reconhecíveis desse universo imagético chega ao espectador com um bem-vindo frescor técnico. Completamente animado no estilo stop-motion / 3D, o longa, dirigido (e co-roteirizado) por Cesar Cabral e com direção de animação comandada por Thomas Larson traz uma nova interpretação visual ao estilo nacionalmente conhecido de Angeli, criando uma identidade própria, fluida e que funciona perfeitamente dentro do universo diegético estabelecido.

Livremente inspirado na obra de Angeli”, como anunciam os créditos, o longa administra a coexistência de seus dois personagens principais através de focos narrativos divididos que a princípio são quase que dois filmes distintos, que se entrecruzam sucessivamente. Em um deles (o primeiro a ser apresentado), uma equipe de filmagem acompanha Angeli em seu estúdio, entrevistando-o e também colhendo depoimentos de sua companheira Carol e de colegas de trabalho, no que parece ser a elaboração de um documentário. No outro, Bob Cuspe, vivendo em um deserto pós-apocalíptico sitiado em algum lugar da mente de seu criador, resgata os gêmeos Kowalski – também personagens cunhados pelo cartunista paulistano – de uma turba de pequenos mutantes moldados à imagem do cantor-pianista pop Elton John, e os carrega em uma busca por Angeli após descobrir que o desenhista possuía planos de matá-lo, como fez com outras de suas criações – Rê Bordosa, uma das mais reconhecíveis, é recorrentemente citada; sua presença (ou, no caso, ausência) paira por todo o filme (ou os filmes, caso tratemos dos dois núcleos de maneira particular) como um espectro.

Para além da animação estilizada supracitada, outro dos elementos que se destaca durante a projeção é a música: o longa não se aproxima dela como sendo apenas parte do arquétipo punk de Bob Cuspe; ela é também um dos principais elementos de ligação entre os dois protagonistas. Angeli isola-se em seu estúdio repleto de LPs e CDs, trabalha escutando música alta, possui gosto musical similar ao de sua criatura. “O pop”, enquanto ideia abstrata, é um elemento recorrente: desprezado por Bob, o gênero musical, quando reproduzido no toca-fitas do personagem, funciona como um tranquilizador para os Elton Johns mutantes (e é válido fazer um parêntese para comentar que músicas da banda brasileira “Titãs” aparecem de maneira ilustrativa tanto para o punk quanto para o pop, sendo um de seus ex-integrantes parte do elenco do filme). O que a princípio pode parecer mero alívio cômico acaba se manifestando enquanto um elemento consistente nas regras daquele mundo, que é pavimentado pelo humor cínico, pelo grotesco e pelo absurdo – características conhecidas da obra de Angeli.

Se aqui tais elementos podem parecer um tanto quanto “suavizados” para a parcela do público familiarizada com o trabalho do cartunista, isso pode ser potencialmente justificado na constatação do Angeli fictício aqui apresentado de que ele, envelhecido, não é mais o mesmo de trinta, quarenta anos atrás: ele hoje é outro; seu estilo é outro, seu trabalho é outro, seu espírito é outro, e “Nós Não Gostamos de Gente”, ainda que constantemente referencial à revista “Chiclete com Banana”, existe e funciona numa lógica à parte.

Por mais que a princípio o núcleo do mockumentary (que eventualmente trespassa os limites do filme-dentro-do-filme e passa a acompanhar mesmo o que ocorre quando Angeli está sozinho) possa parecer mais sedutor ao espectador, graças a seu irresistível e bem-humorado jogo de metalinguagem, uma vez que a saga de Bob Cuspe engata de vez, ambos os núcleos se intercalam de maneira igualmente interessante. Não obstante, desde o começo a dublagem de Milhem Cortaz no papel do personagem titular chama a atenção – a voz cai ao punk rabugento como uma luva, e o mesmo pode ser dito sobre o restante do elenco, ainda que este seja surpreendentemente enxuto: Paulo Miklos como os irmãos Kowalski; André Abujamra como o taxista que guia Bob e os gêmeos através da cabeça de Angeli, além de mais uma ou outra participação menor. Comentar a performance de Laerte e Angeli interpretando versões ficionalizadas de si mesmos pode parecer ocioso, mas considerando não se tratarem de atores/dubladores profissionais, ambos se retratam com naturalidade convincente.

Ocasionalmente se enveredando por uma espécie de egotrip (ainda que autocrítica e autoconsciente), “Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente” mantém-se despretenciosamente divertido do início ao fim; o seria mesmo que focado inteiramente no falso documentário sobre Angeli, e também se existisse apenas enquanto a aventura protagonizada por Bob; a junção das duas ideias e da coexistência das duas num limiar diegético (que é incorporado enquanto recurso de linguagem) é uma combinação efetiva que dá sustância ao formato de longa-metragem e que rende uma animação memorável, digna de seu texto-fonte e detentora de suas próprias virtudes.

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