“Esqueça, Jake, é Chinatown”, ouve o protagonista de Chinatown, noir de Roman Polanski, logo após presenciar uma cena traumatizante que resume toda a sordidez do mundo que investiga. De mesmo modo, Batman de Matt Reeves (Planeta dos Macacos: A Guerra e Cloverfield) vai à gênese do personagem de Bob Kane para criar uma narrativa investigativa que tem um DNA de noir, mas está mesmo mais interessada no que há de melhor nos filmes do gênero: o impacto da crueldade do mundo em seus personagens.
O Batman sempre foi um personagem perturbado. Sua origem é o trauma, seu meio é o medo e seu ambiente de trabalho são justamente os lugares mais soturnos de Gotham. A ideia de Reeves, então, não é exatamente um estudo de personagem, mas criar os alicerces que alimentam sua existência. Em um dos diálogos do filme, um dos vilões afirma que a cidade sempre faz a pergunta errada (sobre a identidade do protagonista), visto que ela não importa. O ser humano de verdade é o Batman, e Bruce Wayne é apenas a máscara social do herói.
Mas, diferente de ótimos filmes adaptados de gibis como Homem-Aranha 2, Batman se assume como um filme que não mostra conflito entre o humano e o herói. Na verdade, o espectador “chega tarde”, e essa batalha já está vencida. O Bruce Wayne de Robert Pattinson só entra em cena quando o Batman precisa dele. A humanidade do próprio personagem é sufocada, minimizada. É criada uma tensão entre o indivíduo e a cidade, que resulta em uma relação de codependência: ao mesmo tempo que Gotham precisa do morcego, Wayne precisa dela para existir como quem é por dentro.
Com esse cenário posto, é impressionante como Reeves consegue administrar tantos núcleos e personagens, dando a eles valor narrativo mesmo com pouco tempo de tela. O Alfred de Andy Serkis, por exemplo, é um dos principais rostos do elenco, mas pouco aparece, e quando o faz, é apenas para segurar o pé de Bruce Wayne para que ele mantenha algo de sua humanidade por trás do manto encapuzado. O Batman de Reeves surge sempre das sombras, mas sem alarde. Nem mesmo os inimigos são surpreendidos, por mais que estejam amedrontados. A imagem da silhueta do herói surgindo de becos escuros logo após ouvirmos seus pesados passos mostra como o Batman é um produto de Gotham – algo que o filme sempre reafirma, como quando Wayne é referenciado como o príncipe da cidade ou quando um dos vilões aponta a família Wayne como uma das famílias fundadoras da cidade.
Ao longo do filme, Batman se entende como um reflexo de Gotham não só por seu sangue fundador, mas por ser o principal produto mitológico da cidade. Com isso, o caminho natural, portanto, é a própria ressignificação. Em Batman, o herói não é reintroduzido, mas reinventado ao longo da narrativa. Quando a história começa, Bruce já usa a roupa preta há no mínimo dois anos, mas se consolidou como um símbolo de medo que extrapola a criminalidade (por exemplo, quando ele enfrenta uma gangue no metrô, mas a vítima da gangue também fica com medo do Batman). O herói entende não só que precisa estar mais próximo do povo, como também que precisa ser símbolo de esperança, de mudança.
Se a visão de vários personagens é a de que a prefeitura não importa, já que a cidade é governada pelo crime independente do mandatário, Batman absorve essa ideia e tenta refundar Gotham ao passo que se reinventa como mito. E isso vai desde sua imagem pública às suas ações e princípios, pois apesar de manter a regra de não matar, o personagem permanece muito distante do povo. Como o bilionário privilegiado que é, Batman é incapaz de conceber algumas situações e resolver questões por haver um distanciamento social gigantesco entre ele e a realidade. Não por acaso, quando um promotor de justiça diz que a cidade está preocupada com o louco à solta, o espectador reflete, por alguns segundos, se o louco em questão não é o próprio Batman, ou o vilão, Charada.
Entendendo essa relação de simbiose entre o mito (Batman) e o espaço (Gotham), Matt Reeves entrega um filme que ainda merece méritos por valorizar a presença desse espaço. Há, de fato, uma mise-en-scene planejada, e não fundo verde e cenários cinzentos. A Gotham de Batman é suja, escura, e reserva perigos inesperados a cada esquina. O uso de efeitos digitais é mínimo para que cada canto desse lugar seja palpável e converse com a imagem do herói. É a primeira vez em décadas que um filme do personagem dos quadrinhos surge como materialização do próprio ambiente em que está, já que além da construção cênica, o Batman de Pattinson é, como eram os bons personagens noir, uma figura complexa, depressiva, sombria, violenta, cheia de dúvidas e dores e nem sempre com as ideias certas.
Sempre preocupado com imagens, reflexos e usando para isso muitos planos baseados em projeções e vidros (as lentes que o personagem usa para registrar sua ação; as vidraças, clarabóias e janelas que estão em praticamente todos os cenários e momentos relevantes do filme; o vidro que separa herói e vilão no último confronto), Batman traz um personagem em crise psicológica que percebe em si o potencial para curar uma crise social do espaço onde vive. Mas para isso, é preciso ressignificar a imagem. Assim como o próprio filme tenta, à sua maneira, ressignificar os blockbusters de quadrinhos ao negar o fundo verde e a artificialidade e lembrar que, vejam só, é possível ter mise-en-scene em filmes de heróis.