Drive My Car é um filme que aposta numa dramaturgia do mínimo. A história de um diretor de teatro diagnosticado com glaucoma e que passa a depender de uma motorista para se deslocar pela cidade parece apontar para um dramalhão no estilo Perfume de Mulher (1992), mas os caminhos percorridos por Ryûsuke Hamaguchi, com base num conto de Haruki Murakami, são outros, bem distantes desse. A começar pela própria forma como tais elementos de enredo são articulados.
O glaucoma do protagonista Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), anunciado no prólogo (de cerca de quarenta minutos) do filme, não se mostra um elemento definidor do drama. Longe disso: logo se torna detalhe desimportante, já que não é a doença que gera a dependência em relação à motorista Misaki Watari (Tôko Miura), mas uma cláusula contratual no novo trabalho de Kafuku. Hamaguchi, aliás, usa algumas vezes esse artifício de plantar pistas falsas, escapando de estabelecer rumos óbvios para a narrativa e neutralizando seu potencial para grandes explosões dramáticas.
Alguns exemplos: a descoberta, pelo protagonista, do adultério de sua esposa, numa sequência inicialmente construída segundo uma lógica do desencontro que levaria a um momento catártico, se encerra frustrando essa expectativa, não produzindo consequências ou crise imediatas; a própria saída de cena dessa personagem, repentina, não se conecta diretamente a acontecimentos anteriores da trama, remetendo de forma muito convincente a uma ideia de aleatoriedade da vida; e a relação de Kafuku com Watari demora a se tornar o centro do filme e, apesar de ganhar intensidade na hora final, jamais se aproxima de qualquer apelação lacrimosa.
Hamaguchi dirige Drive My Car com a suavidade com que Watari conduz o carro de Kafuku. Seu realismo delicado lida com a realidade sem sobressaltos ou brutalidade. O diretor não busca “gritar” a relação de contiguidade existente entre filme e mundo, mas tampouco impede que ela apareça, que a vida lá fora se intrometa na diegese. O melhor exemplo disso é a cena em que Kafuku e Watari conversam e fumam à beira de um rio de Hiroshima: o plano aberto em plongée, que predomina mesmo quando o diálogo entre os dois começa a abordar um tema importante para a história, ressalta mais uma vez a preferência de Hamaguchi por escolhas de encenação que reduzem a intensidade dramática; quando ele enfim corta para enquadramentos aproximados dos atores, um elemento externo (o frisbee de um cachorro que passeia com a dona no parque ao lado) intervém e interrompe a conversa.
Essas escolhas estilísticas e de condução do enredo dão a Drive My Car uma espécie de lastro para os momentos em que se faz necessária uma explicitação maior do drama, com diálogos mais diretos sobre os sentimentos dos personagens. É o caso principalmente da cena em que Kafuku e Watari expurgam demônios do passado diante do cenário de uma tragédia pessoal. Traumas e culpas são verbalizados e um abraço emocionado acontece sem que o realismo proposto perca sua coesão. Afinal, esses eventos de grande porte também são parte constituinte da existência, lembrete presente na cena final de Drive My Car, que insere na diegese a pandemia de Covid-19. Mas Hamaguchi também lida com eles com naturalidade, integrando-os ao fluxo contínuo da vida, o que já era visível no uso do terremoto de Fukushima na narrativa do excelente Asako I & II (2018).