Diversos filmes trazem e discutem ideias sobre o que é viver, sobreviver e fazer parte de uma cidade. Rio, Zona Norte é um deles e faz isso de forma fenomenal, trazendo muitas reflexões acerca da identidade suburbana. Nelson Pereira dos Santos, diretor do filme, escolhe começar com diversas imagens da Central do Brasil, ponto de referência muito importante na cidade do Rio de Janeiro e certamente um local de encontro de muitas identidades cariocas. Antes de continuar os créditos iniciais, pontua a importância do local, da ideia do trânsito, da locomoção e da ideia de território. O primeiro personagem apresentado a nós é o trem.
Espírito da Luz é nosso protagonista. Espírito é um corpo errante no mundo. Começamos o filme vendo o que acreditamos ser seu corpo jogado entre os trilhos do trem. O formato de flashback, representando a agonizante tentativa de Espírito de se apegar a suas memórias restantes, constantemente nos lembra como será o desfecho daquela história de sonhos que nós vemos. A ideia de movimento está presente no filme inteiro. Em algum momento Espírito, sambista e morador do morro, ouve a seguinte frase: “Se for descer aproveita o caminhão”. Estamos familiarizados com a dificuldade de locomoção quando se mora em áreas periféricas e não privilegiadas de uma cidade. Não precisamos ser moradores do subúrbio carioca para entender essa dificuldade.
Em uma de suas apresentações como sambista, Espírito conhece Moacyr. A amizade de Espírito e Moacyr é rodeada de impossibilidades e desencontros, é difícil chegar até Moacyr, mostrando os desafios de ser essa pessoa marginalizada no meio dos grandes intelectuais. Espírito precisa deixar de trabalhar para falar com o violinista, porque o caminho é longo, é preciso dedicar um dia inteiro para se deslocar até o centro e conversar com o recente amigo. Como também sabemos, é uma dificuldade criada e calculada para limitar o vai e vem de pessoas que são indesejadas. Moacyr desdenha, não dá atenção, diz para Espírito voltar outro dia, provavelmente não tem ideia de que o outro teve que abrir mão de um dia de trabalho para aquele encontro.
Nosso protagonista acaba sendo um fantasma por trás de suas composições porque sofre tentativas de apagamento da sua existência e autoria nas músicas. É cercado de pessoas que querem se aproveitar do seu talento, que querem que sua participação nas composições seja clandestina, fazendo promessas de que ele verá o retorno disso em forma de dinheiro, algum dia, quando as músicas começarem a vender. “Mas é que também você mora longe pra burro” é uma justificativa que Espírito ouve sobre não ter assinado um contrato sobre o seu samba que vai ser gravado. É obrigado a aceitar o que vier porque precisa de dinheiro, como vemos cenas antes; ele casa com uma mãe solteira que se muda para junto dele com um filho pequeno, precisa de dinheiro para finalizar a tendinha que está sendo feita para ele, precisa de dinheiro para pagar o que foi emprestado a seu filho, que queria ir para São Paulo tentar uma vida nova, além do óbvio dinheiro que todo ser humano precisa vivendo numa sociedade capitalista. Então Espírito se vê na posição de receber promessas e migalhas de dinheiro a troco de ser enganado.
A estética e cultura que é apropriada mas não assumida e valorizada, negligenciada. Espírito, junto de amigos, vê seu samba “Mexi com ela” sendo tocado na rádio, anunciado como de autoria de outros e não dele mesmo. Não vemos em tela os músicos da rádio cantando a música e nem os ouvimos, mas vemos Espírito e companhia cantando e dançando ao som do samba, o samba sendo entoado por aqueles que o possuem genuinamente.
Lorivaldo, filho do protagonista, acaba não indo para São Paulo e volta para o grupo de amigos que fez no patronato. Comete um crime e tenta roubar Seu Figueiredo, parceiro de Espírito, e essa é uma dificuldade que atravessa Espírito, mais uma pedra no meio de seu caminho e mais uma urgência de se precisar do dinheiro. Ele perde a tendinha, a mulher decide ir embora. Vemos seus sonhos sendo perdidos, se despedaçando.
Espírito acaba tendo que pagar as dívidas do filho com o grupo, que acaba matando o mesmo a pedradas e facadas. Espírito escreve um samba sobre a morte do filho e se recusa a vendê-lo ou deixar que qualquer outra pessoa o possua. É seu momento de luto, é expressão do seu ser, mais importante do que talvez ganhar migalhas em cima disso, Espírito defende o que é seu, o que é sua identidade, e quer ele mesmo gravar esse samba com Ângela Maria, famosa cantora da época, pessoa com quem ele almeja trabalhar. Ele, indo até a rádio e falando com a cantora (em cenas anteriores vemos ele tentando falar com Moacyr, por exemplo, e esse não dando muita atenção ou postergando o encontro dos dois) conseguiu fazer com que a mesma ouvisse seu samba. A felicidade de Espírito ao ver Ângela cantando sua música, “Malvadeza durão”, seus olhos cheios de lágrimas, encarando seu sonho, é sua pequena redenção.
Há uma sequência onde Espírito se encontra com Moacyr e seus amigos intelectuais, músicos e artistas burgueses que julgam o samba de Espírito da forma mais formal e engessada possível, sem alma e academicista. Não são mostrados como vilões, porque de fato não são, apenas nunca conseguirão entender o que é a vivência do samba, de Espírito, do morro. Não conseguem se aproximar disso afetivamente, por mais que tentem, por mais que Moacyr tenha intenções de ajudar o colega de profissão, ele não se mostra disponível de fato – está distante, preocupado com seus frustrações, suas ambições de carreira – e acaba não se importando com Espírito, faz muitas promessas vazias. Em algum momento da reunião, os amigos do anfitrião acabam se locomovendo para o canto da sala, enquanto se inundam com suas discussões filosóficas e burguesas. Podemos, novamente, ver a diferença de relação de distâncias, onde um é marginal, “longe pra burro”, acaba sendo negligenciado, acaba sendo o trem que parte às 23 horas, enquanto o outro tem o privilégio de estar lá, ser o centro, ser o “correto”, ser a regra, sem se preocupar em ser a negação de tudo, o que é “errado”. Não é a intenção colocar o suburbano no lugar de vítima ou de “pobre coitado”, é apenas encarar a realidade; existem as dificuldades, existem os obstáculos, e ignorá-los não é, de forma alguma, passar por cima deles.
Aos poucos vamos nos encaminhando para o inevitável. No presente, Espírito está sendo levado ao hospital depois de ser encontrado nos trilhos da ferrovia e irá fazer uma operação no crânio, na tentativa de ser salva a sua vida. Fica nas mãos de Moacyr ser o único conhecido identificado de Espírito, e é o que está lá presente quando sua morte é anunciada, junto com outro companheiro da rádio. Não está lá sua família, não está lá seus vizinhos, não está lá nada que ele considera sua casa, quem está lá para ver sua morte, presenciar seu último suspiro, é quem o oprimiu, quem tentou o calar, quem o enganou. Seus sambas acabam ficando na responsabilidade de Moacyr, que por mais que tente, nunca vai saber o que se passava na cabeça de Espírito no que diz respeito a melodias e entonações naqueles sambas. Não há espaço para genuinamente aquelas músicas viverem nessas condições.
A relação de afeto que ele cria com o trem, o lugar de felicidade, onde se depara com vivências reais e semelhantes às suas, onde naturalmente vem a letra e a melodia de um novo samba, é nesses atravessamentos, é isso que não dá para se forjar, a identidade que é expressada de forma artística por Espírito, que canta que o samba que é dele e do Brasil inteiro. Espírito está feliz cantando seu samba na porta do trem lotado antes de cair, como se caísse de um sonho, acordasse para a realidade. Espírito morre, mas como diz seu nome, é algo que permanece no pós vida, “Espírito da Luz”, não é algo simples de esquecer. O samba como formador de memória, memória coletiva. A Central do Brasil, símbolo da integração, local de movimento, antes nos é apresentada de dia e a plena luz, movimentada, cheia, com vida. Agora aparece a noite, escura e distante, luz que se apagou junto com Espírito