Quarto longa-metragem dirigido por Rodrigo de Oliveira, Os Primeiros Soldados é um drama poderoso e delicado sobre o impacto da epidemia de HIV/AIDS na comunidade LGBTQIA+ de Vitória no início da década de 1980. O filme de Rodrigo, protagonizado por Johnny Massaro, Renata Carvalho e Vitor Camilo, mira na recuperação de um momento escassamente abordado pelo cinema brasileiro, ao mesmo tempo que estabelece um diálogo incômodo com o presente do país.
Nosso editor Wallace Andrioli conversou com o diretor durante o 11º Olhar de Cinema.
Rodrigo, primeiramente, parabéns pelo filme! Gostaria de começar te perguntando sobre sua relação, como espectador, crítico e cineasta, com esse universo dos filmes que abordam a temática do impacto do HIV sobre a população LGBTQIA+, que vão de obras mais independentes, como Buddies (1985) e Encore (1988), a vencedores do Oscar, como Filadélfia (1993) – mas, curiosamente, poucos brasileiros. Você tomou uma ou mais dessas obras como referência, mesmo que distante?
Acho que uma das coisas que a crítica me ensinou e eu sinto muito isso na relação com alguns outros realizadores, que têm outra trajetória, é que as pessoas às vezes elas tentam não assistir tanta coisa, pra não se influenciar, e o meu caminho é sempre muito o oposto. Eu quero, ao contrário, ver tudo que tiver disponível e eu acho que sobre o tema do HIV/AIDS eu devo ter assistido, sei lá, 95% dos filmes todos que já foram feitos, de todos os lugares, enfim, e isso me impacta mais na maneira, no momento de escrever o roteiro, no sentido de que eu estava atento ao tipo de narrativa, ao tipo de abordagem, ao tipo de escolha que normalmente era feita nos filmes com esse tema, muito pra tentar ou me aproximar, ou rejeitar certas ideias. Pra mim fica muito mais fácil entender que é que eu quero fazer ou que filme precisa ser feito a partir das lacunas e das ausências que eu sinto nesse cinema que já existe. Esse filme, por exemplo, Os Primeiros Soldados é um filme muito que eu gostaria de ter visto quando eu era adolescente, sabe? É um filme que eu acho que chega muito atrasado na cinematografia brasileira. Não faz muito sentido e ao mesmo tempo é parte do problema que ainda não exista um filme ou um conjunto de filmes que tenha lidado frontalmente com a epidemia de AIDS no cinema brasileiro e no cinema latino-americano, na verdade, né? A narrativa do HIV/AIDS é muito americana e europeia e esse filme tinha um pouco esse espírito.
Agora, em termos de influência posterior às decisões narrativas, de influências estéticas e tal, o meu barato, cara, sempre é o cinema brasileiro. Eu conversava muito com a equipe, especialmente com o Lucas Barbi, que é o fotógrafo, que o ideal pra mim seria que esse filme pudesse ter sido lançado no ano em que ele se passa e que não houvesse nenhuma diferença muito gritante entre o cinema que existia naquela época e esse que a gente tá tentando fazer sobre aquela época. Claro que todas as diferenças tecnológicas e de estilo e tal, mas enfim, alguma sensação de época me era muito cara. E aí, nesse sentido, por exemplo, existia uma pasta lá no drive pra equipe e pro elenco de, sei lá, uns 30 filmes brasileiros, de 82 a 85, que eu queria muito que todo mundo assistisse. E aí, filmes brasileiros de todos os tipos, não só, assim, o cinema autoral, certamente nenhum desses filmes abordava diretamente esse assunto ou mesmo tinha personagens LGBTQIA+, alguns poucos casos e tal, mas existia nesse conjunto de filmes uma ideia do que era existir como brasileiro naquele período, sabe? Como os corpos se movimentavam, como era a relação com o tempo, com a própria ideia de liberdade, enfim, é finzinho da ditadura, então tem coisas que já estão abertas e tem coisas que ainda permanecessem muito fechadas… E aí, assim, valia tudo mesmo, então, sei lá, eu diria que um filme que é tão pra Os Primeiros Soldados quanto qualquer outro filme da temática do HIV/AIDS é tipo A Próxima Vítima, do João Batista de Andrade. O Onda Nova, o Bete Balanço… E o mais importante de todos, assim, que é um filme que é bem o norte do espírito que a gente queria elogiar no filme é o Anjos da Noite, do Wilson Barros, que é uma pessoa que é agradecida inclusive nos créditos do filme… Que é isso, assim, apesar do Anjos da Noite não ter nenhuma relação direta com o assunto, mas foi o nosso primeiro grande cineasta que a gente perdeu pra AIDS. E de alguma forma o Anjos da Noite é um pai espiritual das sensações que a gente queria ter no Os Primeiros Soldados.
E você arriscaria dizer por que o cinema brasileiro – e latino-americano – demorou tanto assim a se dedicar a esse tema? Talvez o primeiro filme de maior visibilidade seja o Cazuza, né? Que é de 2004. Se a gente for comparar com o cinema americano, europeu, você tem filmes ali de meados dos anos 1980 já abordando essa temática, né?
É, e mesmo o Cazuza, assim, com essas questões da cinebiografia… Eu não sei por exemplo o quanto o filme do Cazuza avança na problematização da capa da Veja do Cazuza, que é… Na comunidade brasileira atual que vive com HIV, a capa da Veja do Cazuza ainda é um assunto importante e um marco, assim, sabe? Do que não fazer. De como não lidar com o assunto. E eu não sei o quanto o filme consegue avançar pra além daquilo. Mas é isso, o cinema brasileiro tem ali e aqui alguns personagens que vivem com o HIV, mas um filme que se dedique ostensivamente a falar sobre essa geração não existia ainda. E eu acho que, como eu falei, isso é parte do problema, que tá na origem de toda a homofobia, e a transfobia e a sorofobia que existem ainda no Brasil hoje, assim, que é uma tentativa de permanecer silenciando essas narrativas e de alguma forma afastando elas da história oficial do Brasil, sabe? O Brasil é isso, ele teve uma postura de combate à AIDS muito interesse ali da metade dos anos 1990 pra frente, hoje os tratamentos estão todos disponíveis de maneira gratuita, ao mesmo tempo em que isso de alguma forma liberou não só o poder público, mas acho que também um pouco a consciência coletiva, da obrigação de pensar sobre essas vidas, sabe? É quase como se fosse assim: “olha, já existe aqui o tratamento, o que mais vocês querem? Vocês querem voz, já não basta que vocês não morram mais? Vocês ainda querem contar suas histórias, vocês ainda querem que a gente não… vocês ainda querem não sofrer os preconceitos mas a gente já tá salvando sua vida, então assim, toma aqui o remédio e me deixa ficar com a minha homofobia aqui”, sabe? Então é uma barganha muito estranha que o Brasil vive, e isso fica muito evidente nesse momento conservador no país, mas que há uma história que, óbvio, vem de muito tempo, e a AIDS tá muito na origem dessa homofobia reinante de hoje. É isso, a ideia de que isso que a gente é, isso que a gente da comunidade LGBTQIA+ é, a ideia de que o que a gente é pega! Que a nossa presença em algum lugar, que o nosso contato com uma criança, que a exposição da nossa história na TV, que um beijo na novela, que isso tudo vai fazer com que pessoas virem isso que a gente é. Isso tudo tá muito marcado por essa narrativa da AIDS, né? Dessa coisa que se transmite, né? E eu acho que tá mais que na hora de começar a repensar esse esquema e isso passa pela representação disso no cinema. É isso, tem alguns curtas que trabalham com isso já, na ficção, há algum tempo, tem o documentário do Gustavo [Vinagre] e do Fábio [Leal] agora, o Deus Tem AIDS, tem esse meu filme. E eu acho que existem muitas outras histórias sobre o HIV/AIDS que ainda precisam ser contadas, mas a gente precisava começar de algum lugar, e a ideia do meu filme é um pouco essa: talvez as respostas pra isso tudo estejam lá no começo, no começo anterior inclusive ao nome da doença, talvez as respostas pro que a gente deve fazer a partir de agora estejam lá.
Como foi trabalhar a partir da relação com essas referências militares (o título, a coisa do filme de guerra, a ideia de batalha contra um inimigo comum) nesse momento que a gente vive no Brasil? Você pensou esse aspecto num sentido mais provocativo, de associar a ideia de “soldado” a personagens LGBTQIA+, distantes portanto dessa masculinidade militarizada?
A origem do título, por exemplo, tá lá na Susan Sontag quando ela escreve primeiro sobre o câncer, e depois sobre a AIDS, da maneira como o vocabulário médico começou a absorver o vocabulário militarista pra descrever o que acontecia dentro do corpo com essas doenças de ataque muito radical, assim, né? E aí em algum momento, porque o filme, uma parte do gesto do filme também vem provocado, ou vem em contraponto ao que estava começando a acontecer… A primeira ideia do filme, por exemplo, aparece na eleição do Marco Feliciano pra Comissão de Direitos Humanos da Câmara. E aí eu lembro que a primeira pauta dele incluía um monte de coisa, inclusive o retorno da terapia de conversão, da tal da “cura gay”, enfim, e eu falei: bom, é o momento de começar a contar certas histórias que estão apagadas. Então, assim, é muito anterior ao governo atual, mas, ao mesmo tempo, é parte da mesma luta. E, em algum momento, depois do que rolou, do que tá rolando, eu de fato considerei trocar o título e tudo, mas ao mesmo tempo tem uma… Assim, a nossa comunidade tem por hábito reclamar de volta termos que eram usados pra nos atacar. Então é isso, assim, hoje “travesti”, por exemplo, que era um termo de ofensa foi abraçado pelas travestis de uma maneira, como uma identidade política, e é isso: é possível ser uma mulher trans sem se identificar como travesti, mas identificar-se como travesti significa coisas muito específicas, assim, né? O “viado”, enfim… E aí eu fiquei pensando nesse gesto oposto. Um pouco do problema nessa narrativa homofóbica que nos joga pras margens é que não se atribui muita coragem e muita disposição de luta às minorias. E eu fico pensando muito… Tem esse termo, que é o “afrontar”, que é muito usado na comunidade, sobretudo pelas pessoas mais jovens. “Ah, fulano é super afrontoso” e isso tem um aspecto de convocação à guerra, sabe? Aquele corpo… Nesse caso, aquele corpo preto, afeminado, que não consegue ser outra coisa a não ser isso, é da natureza desse corpo se apresentar desse jeito, porque ele é existe ele é naturalmente político e confrontador, ou “afrontoso”, sabe? E eu fiquei pensando: cara, por que não assumir a possibilidade de que os soldados que interessam, o exército que faz sentido num Brasil que não entra em guerra há anos, não serem as pessoas que pintam o meio-fio e que tentam dar golpe, mas serem essas outras pessoas que de fato enfrentaram batalhas e continuam enfrentando? E aí o espírito do soldado, destacado do militarismo e recolocado no embate político começou a fazer muito mais sentido.
Esse início dos anos 1980 é um período muito marcante no nosso imaginário, com a euforia pelo fim da ditadura militar, a emergência do novo rock nacional, elementos da cultura pop que são até hoje referenciados, além, claro, dessa experiência traumática da epidemia de HIV. Como foi sua aproximação desse período pra realizar o filme? Até que ponto você vê Os Primeiros Soldados como uma tentativa de reconstituir um momento histórico e até onde vê como um filme que é também, ou sobretudo, sobre o presente?
É, a gente tinha alguns desafios práticos, por exemplo em termos de orçamento, que faziam com que a gente tivesse que abandonar de partida a ideia de reconstruir, qualquer ideia de reconstruir aquela época. Então o nosso trabalho foi mais o de buscar 83 em 2019, no caso, que foi quando a gente filmou. Em Vitória, por exemplo, que é onde a gente filma, esse exercício é diário, porque é uma cidade que tem quase 500 anos e onde as épocas convivem todas de uma maneira muito forte na sua experiência de rua. Então você sai e numa mesma rua você tem uma igreja de 1580, um prédio modernista, uma construção de 2 meses atrás e, dependendo de pra onde você olhar, dependendo do recorte que a câmera fizer, você é imediatamente transportado praquele período, então o nosso trabalho foi muito desse, de tentar encontrar onde ainda era 83 em Vitória, em termos mais pragmáticos. Mas, por exemplo, eu conversava com o Hugo Reis, que é o técnico de som do filme e que depois fez também a edição de som, a gente conversava por exemplo sobre uma ideia de som de época, assim, que é uma coisa que não se pensa muito, né? É isso, assim, a sonoridade era diferente, a projeção dos atores era diferente, as relações dos ambientes eram diferentes, a gente ficava assistindo a esses filmes todos e a gente ficava pensando muito nisso, sabe? Era uma outra relação que o cinema tinha com a ideia do som. E aí como fazer pra reproduzir isso? Será que é só a gente conseguir uns microfones da época, ou será que tem algo na nossa postura dentro do set que possa fazer com que a gente consiga escutar esse som de 83? Mas ao mesmo tempo, de maneira mais geral no filme, era muito consciente a ideia de que a gente estava apontando pra esse período e falando a partir do presente, porque o filme propõe uma coisa que eu acho muito importante, sobretudo por causa desse histórico dos filmes de HIV/AIDS e dos clichês mesmo que são repetidos na maioria desses filmes talvez… Eu acho que uma coisa que o filme é de alguma forma propor um certo pacto de ignorância com o espectador. Como o filme se passa num período anterior ao conhecimento de várias dessas coisas que a gente sabe hoje em dia, e como os personagens estão numa busca pragmática por conhecimento, por entender o que tá acontecendo, a ideia do filme é muito que o espectador experimente essa mesma jornada. Tanto que é isso: a palavra AIDS só aparece no filme nos últimos 5 minutos. Então aí nesse lugar eu acho que essa conversa com o presente se estabelece de uma maneira mais frutífera. Porque é pedir pra esse espectador de 2022 se colocar em 83, num momento de ignorância completa. E aí a ignorância ela é um pouco atemporal, né? O tempo se estabelece no momento que você tem conhecimento e as balizas necessárias pra dizer: “ah, isso aqui… porque isso aconteceu, esse é um momento histórico, aqui é um marco…” Mas assim, num momento em que não se sabe de nada, o tempo fica meio suspenso assim, até você ter informações. Tipo, a última coisa que o Suzano, o personagem do Johnny Massaro, fala no filme é “nós vamos morrer sabendo o máximo que podíamos”. E a ideia do filme era um pouco essa, sabe? Será que é possível fazer que a jornada do espectador se cole tanto à dos personagens a ponto de, quando a gente chegar no final, esse espectador do presente estiver no mesmo lugar que esses personagens do passado? E um pouco do barato era esse. E de maneira mais prática assim na narrativa é usar o conhecimento disso que é histórico, do que aconteceu na luta contra a AIDS, do que começou a acontecer oficialmente na luta contra a AIDS a partir de 85, que é quando a maior parte das estatísticas no Brasil começam a ser computadas, sabendo que esse período anterior, esses 2, 3 anos anteriores, eles existiam basicamente da mesma forma, só que eles estão eternamente mergulhados nessa ignorância. Porque é isso: a gente não tem dados, não tem nomes de pessoas, é tudo muito obscuro. Então tem coisas muito específicas, como por exemplo o uso do vídeo como elemento de… Como ao mesmo tempo uma maneira de eternidade, uma espécie de ativismo e um caráter mais memorialista, assim, das lutas específicas de minorias, é uma coisa que vai começar ali em 85, 86, e agente já trás um pouco pra antes. A coisa desse contrabando de drogas alternativas também, assim, a gente começa a ter notícias oficiais 2, 3 anos depois e a nossa imaginação era “pô, mas é claro que as pessoas estavam tentando isso desde o começo, a gente só não sabia ainda, mas é claro que eles estão tentando fazer isso”. E a coisa da comunidade, assim, né? Em Vitória, as primeiras casas de acolhimento pras vítimas de AIDS, lideradas por travestis, começam oficialmente em 86, 87. Mas essas eram as que saíam no jornal. A gente sabe… É isso: a primeira pessoa a cair pela AIDS em Vitória ou era uma travesti ou foi cuidada por uma travesti. A história desse período da AIDS são as travestis e é uma coisa que a Renata fala no filme, a Renata Carvalho: “se essa peste é gay, a mãe dela é a travesti”. Elas foram as mães dessa epidemia desde o começo. Então por que não já reproduzir isso nesse período de que o filme trata? E aí nessa conjugação de passado e presente o filme vai sobrevivendo.
E essa noção de comunidade me parece muito forte, no interior da narrativa como um todo mas acho que principalmente na segunda parte, quando os 3 personagens estão ali mais isolados. E como foi o seu trabalho com o elenco nesse sentido? Porque me parece que você alcança ali também um integração muito forte, afetiva, emocional, com aqueles 3 personagens, aqueles 3 intérpretes, né? E que são incríveis, as atuações dos 3 são maravilhosas…
Eu também acho. Assim, tem uma coisa que perpassa o elenco todo que vem do desejo de fazer um filme sobre uma comunidade específica que fosse feito por essa comunidade. Então o elenco inteiro, assim, personagens gays são interpretados por atores gays, personagens travestis são interpretadas por travestis e isso vale pra todos. E isso gerou uma… Um compromisso assim mesmo, coletivo, de essas são as histórias dos ancestrais aos quais a gente não teve acesso. Então todo mundo, de alguma forma, acessou essa ancestralidade, que é uma coisa que não aconteceria por exemplo se houvessem um protagonismo hétero ali no filme, sabe? Então, assim, estava todo mundo muito consciente de que a gente estava fazendo algo coletivo em nome, em honra às gerações que nos antecederam. E aí uma vez que esse compromisso tá estabelecido e que a responsabilidade tá compartilhada, o trabalho com os atores fica muito… Eu sou um pouco místico, assim, mas é uma coisa meio da ordem da magia mesmo, sabe? Alguma coisa acontece que não é exatamente ensaiável assim, né? O que era ensaiável, e o que a gente fez, foi, sobretudo com o Johnny Massaro, a Renata Carvalho e o Vitor Camilo, que são esses três personagens que vão ali pro sítio e tal, foi ir pra sala de ensaio e tentar viver ao máximo a experiência dessa comunidade. Então, sei lá, 1 mês, 2 meses antes do filme, da gente começar o set, a gente foi pra sala de ensaio e ficamos, sei lá, 4 semanas assim ensaiando. Porque o filme tem, enfim, um filme de orçamento modesto a gente não tem muito tempo de descobrir coisas no set, então o roteiro do filme estava todo muito fechadinho assim já, quando a gente foi pro set, mas era possível, e foi uma coisa que a gente fez, explorar coisas que não estavam no roteiro. Então ali, por exemplo, nesse momento do sítio, onde o filme muda de registro, enfim, a gente tem ali uns 12 ou 13 momentos assim de VHS. A gente na sala de ensaio ensaiou uns 50 assim, improvisando situações e tentando descobrir mesmo como era a vivência pra que os corpos desses atores já tivessem a memória da experiência de estar ali naquele sítio, no isolamento, por muito tempo, enfim… Então a gente, eles sabiam, a gente sabia que pra cada momento que a gente ia filmar eles sabiam exatamente o que tinha acontecido no dia anterior e como seria o dia seguinte, e isso tudo se imprime de alguma forma na performance deles ali, sabe? E depois também uma locação direta com a locação, o Johnny Massaro se mudou praquele sítio, ele passou um tempo lá, sozinho. Como na narrativa do filme, inicialmente sozinho e aí depois a Renata Carvalho e o Vitor Camilo chegaram ao sítio e depois eles ficaram os 3 um pouco juntos, até que a equipe chegasse e a gente começasse a filmar aquela parte. E em termos práticos assim, foi a coisa mais gostosa de filmar, sabe? Porque a gente usou uma câmera, que não era uma câmera VHS, mas era uma câmera digital dos primórdios, com a imagem ruim o bastante pra lembrar um VHS, mas muito leve e tal, e o ator, o Vitor Camilo, ele estava operando a câmera na maior parte das vezes, porque o personagem dele estava fazendo isso… Então era muito um momento assim em que a estrutura do filme toda dava um passo atrás pra deixar a cena acontecer ali na nossa frente, sabe? Com os atores muito no comando. E isso só foi possível porque eles estavam muito imbuídos desse espírito coletivo, comunitário mesmo.
Os Primeiros Soldados bateu muito forte em mim como um filme sobre encontrar um desejo de vida na iminência da morte. Como é pra você filmar essa experiência tão extrema e universal da morte? Qual o lugar dela no seu cinema e você vê alguma particularidade na forma como abordou em Os Primeiros Soldados?
É, uma coisa por exemplo que sempre foi uma questão no Os Primeiros Soldados… É, o roteiro desse filme começou há 6 anos atrás, ele passou por diversas interações diferentes assim, mas uma coisa que jamais aconteceu foi a morte do Suzano estar no final do filme. A morte dele sempre esteve no meio e apesar de saber disso, de saber que esse personagem ia morrer, a tentativa sempre de não fazer com que esse fosse um filme sobre alguém que morre de AIDS, o que é uma constante nos filmes sobre HIV/AIDS. A gente fala hoje em dia sobre pessoas que vivem com HIV, mas parece ainda um pouco absurdo que em 83 as pessoas… Em 83 ou mesmo muitos anos depois ainda, né? Que as pessoas vivessem com HIV/AIDS. Mas elas viviam, sabe? Até o último momento elas viviam, então por que não explorar essa urgência de vida, sobretudo entendendo, e eu acho que é um pouco da compreensão que o filme tem, assim, né? Entendendo que essa finalidade daquelas vidas específicas ela vai, ou pelo menos deseja-se que elas tenham um sentido e uma importância pro coletivo. É aquilo que a Rose fala: “Se a gente morrer, morreu, acabou, daqui a pouco vão vir outros como a gente”. Essa ideia de uma continuidade da comunidade é muito importante pro filme. Não esquecer os seus mortos, inclusive nesse lugar, assim, de seguir honrando a memória deles e preservando a memória deles, né? O final do filme é todo sobre isso. A última coisa que se fala no filme é isso… Um personagem pergunta lá pro sobrinho do Suzano: “por que você fica vendo as fitas lá do seu tio” e o Muriel responde “porque alguém tem que ver”. E é isso, eu acho que a relação do filme com a morte é muito essa, que alguém tem que testemunhar essas mortes, senão nem isso vão ter o direito de ser. Elas vão ser só mais apagamento. E, agora, com relação aos meus filmes anteriores, eu fico pensando menos em morte e mais na experiência dos corpos em situações-limite. Os meus filmes têm muito a ver com o abandono. Eu faço muito… Em todos os filmes que eu fiz, assim, eles sempre têm a ideia do abandono no centro, são sempre personagens que estão indo embora e aí é sobre como ficam aqueles que ficaram pra trás, o que significa essa ausência… Os Primeiros Soldados mesmo, né? Por 10 minutos ali no meio do filme os 3 protagonistas desaparecem da narrativa e o filme fica à deriva, tentando se segurar em algum lugar. E essa ideia do abandono, do que significa a presença de um corpo, é algo que me toca muito, eu acho que tem a ver com esse desejo, ou com essa vontade, com esse gosto mesmo pelo cinema… Por esse cinema que entende que isso que a gente faz é colocar corpos pra se relacionar dentro de um espaço e qual é a distância justa entre a câmera e esses corpos. Então é uma pira que eu acho que vem muito do meu desejo crítico mesmo, eu quero entender o que significa a presença e a ausência de um corpo no quadro. Pra mim é muito importante, assim, a posição em que os corpos se encontram, a fragilidade ou a força que eles apresentam… O meu cinema é um cinema que depende muito do ator, então assim, trabalhar o gesto, a expressão, essas coisas todas me interessam muito, porque eu que, apesar de eu fazer filmes que são naturalmente muito falados, porque eu gosto muito da ideia da palavra, são filmes que eu acho que também dá pra assistir no mudo. Porque de alguma forma a narrativa tá contada pelos corpos. Sobretudo nesse esquema de corpos que existem e corpos que desaparecem, o que significa o dentro e fora do quadro espiritual desses corpos, sabe?
Texto escrito para nossa cobertura para o festival Olhar de Cinema 2022. Para acessar a página da nossa cobertura, clique aqui.