Antes de apresentar propriamente suas tensões dramáticas centrais, Noites Alienígenas começa com uma cena onírica: Paulo, um jovem descendente de indígenas, tem uma alucinação com uma serpente decorrente do seu uso de drogas. A cena seguinte mostra Alê, um traficante de meia idade (Chico Díaz), em uma conversa com Rivelino (Gabriel Knoxx), um jovem de 17 anos que colabora com ele no tráfico. Emergem nesse diálogo, e também na aparição de um usuário na porta de Alê, curiosas relações de cumplicidade e afeto, mas também de uma busca por pertencimento que vai permear o restante das relações humanas no filme, seja nas alusões ao espaço sideral ou na busca de Rivelino por uma figura paterna ou um núcleo familiar estável. A sucessão dessas duas cenas no início introduz um contraste estilístico que delineia os temas principais do filme de brutalidade cotidiana, fuga e alienação.
O longo diálogo de Alê com Rivelino é filmado em um plano único, uma operação que se repete na maioria dos momentos em que as motivações dos personagens são postas em causa dramaticamente. Há uma recusa ao corte, à fragmentação do ritmo natural da cena. Está em jogo uma percepção bruta dos gestos e intrigas que fazem parte daquele cotidiano na periferia de Rio Branco, uma realidade tão iminente que a câmera não poderia articular senão de maneira imediata, sem o recurso ao corte e a pontos de vista pré-articulados. A realidade em questão, a recente e violenta chegada de facções do sudeste brasileiro na fronteira acreana somada aos conflitos de identidade e das perspectivas de futuro da geração mais jovem de Rio Branco, parecem provocar uma vontade de evasão nos personagens.
Nessa vontade de evasão há também a contraface de abordagem realista de Noites Alienígenas, os momentos de abstração. Paulo protagoniza a maior parte desses momentos e a sua trajetória no filme é marcada por um distanciamento de quase todos os outros personagens com quem ele interage, com a mãe, com a personagem de Sandra (Gleisi Damasceno), garçonete que por sua vez cogita se mudar de Rio Branco, com o filho pequeno e, por fim, com as próprias raízes indígenas. No entanto, esses momentos não são exclusivos para o personagem de Paulo, eles também aparecem para outros personagens como Beatriz (Joana Gatis), mãe de Rivelino, solteira, que uma hora aproveita uma noite na balada. Esses momentos de fuga têm como característica a divisão pelo corte que, em contraste com o restante do filme, assume um forte caráter expressivo.
Sérgio de Carvalho aborda seus personagens por uma chave afetiva que talvez venha de uma vontade de atingir um nível de descritividade que é característico da literatura, o filme afinal é baseado em um romance que ele mesmo escreveu. É também em razão desse afeto que a chegada da nova “família” de traficantes sudestinos representa uma violência ainda mais simbólica. Mas nota-se que a chegada deles também surge em um contexto que, de certa forma, já parece possuir uma desarmonia em curso, o pai ausente de Rivelino tem um paralelo óbvio com o tratamento negligente de Paulo com o filho que teve com Sandra.
A condição dessas figuras da periferia de Rio Branco, nos extremos fronteiriços do país, é de bastante fragilidade. A geração mais velha encabeçada pelos personagens solteiros de Alê e Beatriz já não vê perspectiva por conta da idade e dos fracassos passados em constituir um núcleo familiar, enquanto a mais nova busca um pertencimento por frentes variadas, grafite, hip-hop, relacionamentos ou, no caso de Rivelino, nas facções recém-chegadas à cidade. Sente-se um fatalismo na representação urbana de Rio Branco, os refúgios e os pequenos momentos de afeto naqueles ambientes urbanos, ainda se provam impotentes diante da destruição iminente. O caminho que se prova de alguma maneira redentor no filme é o que envolve a temática indígena, da conexão ancestral, do reencontro às raízes que precedem o desenvolvimento urbano. A Amazônia urbana é um terreno fadado a ser devorado pelos conflitos de interesse que são próprios daquele modelo de civilização.
Mas do senso generalizado de alienação, do qual todos os personagens sentem, surge um curioso paradoxo no projeto realista de Sérgio de Carvalho. Ao mesmo tempo em que se busca manter um senso de imediatismo nas cenas de maior relevância dramática do filme, a caracterização espacial delas passa por algumas complicações. Em vários momentos a noção de espaço não fica muito clara, até mesmo quando a câmera decide acompanhar os personagens de costas enquanto eles caminham pelas ruas e pelos becos. E mesmo lançando uso de uma decupagem que responde aos movimentos imediatos da cena, o filme ainda parece adiar, um senso de conflito, chegando até mesmo a cobrir alguns dos momentos mais viscerais do enredo com a abordagem onírica que era mais associada aos instantes de evasão. A maioria das cenas em que a câmera não desvia o olhar são brutas mais pelo que os personagens põem em causa através da fala e de alguns gestos menores, enquanto confrontos abertos com emoções torrenciais e ininterruptas diante da lente surgem como instantes bem pontuais.
Apesar das tensões entre o onírico e o naturalista, há uma insistência em transmitir um mesmo estado de espírito que termina por ofuscar os momentos em que a disrupção central de todo o drama do filme é posta em cena. A juventude urbana rio-branquense é vista como uma categoria em vias de desaparecer e seus integrantes de certa maneira já pressentem isso. Mas é ao incorporar estilisticamente um senso generalizado de alienação que é próprio dos personagens, que Noites Alienígenas parece diminuir o efeito dos seus contrastes mais fortes e reveladores.
Filme visto na 16ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.