Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo

Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo

Contrabando de sons em uma suruba sonora

Michel Gutwilen - 28 de janeiro de 2023

O curta-metragem de Renato Sircilli parte de uma inusitada situação de ilegalidade e imoralidade por parte de seu protagonista para se desdobrar em uma série de reflexões e tangentes que nada possuem a ver com qualquer abordagem moral diante dela. Jorge é um funcionário de um motel que grava escondido as relações sexuais dos clientes e vende os áudios para um homem com quem mantém relações sexuais. Aqui, pouco interessam julgamentos do personagem, pois o filme se abre para uma vertente existencialista, na qual as gravações vão se mostrando uma forma dele tentar se conectar com o resto do mundo. 

Um dado importante é que os os dois protagonistas de Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo são idosos, e, aqui, o corpo enquanto matéria/carne é tema frontal. Inclusive, a exposição da nudez de seus atores traz uma boa abertura para refletir sobre a necessidade de normalização de corpos (idosos LGBTQIAP+), que costumeiramente estão em invisibilidade no Cinema. É curioso como sinto existir um movimento de contradição muito bom entre direção e protagonistas: enquanto esses personagens querem sair de seus corpos para imaginar serem outras pessoas, o filme, ao mostrá-los, faz o movimento oposto de valorização que os próprios personagens não parecem ter com eles próprios.

Mais do que meramente um fetiche semi-voyeurista, a fabulação em torno do sexo alheio e a imaginação desses outros corpos se equivale a uma projeção para fora de si, como uma fuga mental que se libera das limitações carnais às quais seus corpos cheios de tesão estão vinculados. Tendo como material uma fita de gravação, a ausência de imagens estimula o espaço fértil para a mente preencher como quiser os corpos e pessoas donas daqueles sons. Nessa provocação de se colocar no lugar do outro, surge uma dessubjetivação. 

De maneira literal, o filme abre margem para pensar afetivamente este contrabando de sons como uma espécie de coletivização de uma experiência que costuma ser restrita a poucos, fazendo um “sexo em mutirão” (usando trocadilho com o tema da Mostra Tiradentes 2023, na qual esse curta se insere) para abranger numa grande suruba também os corpos negados. A partir da transversalidade de prazeres, da mistura de sons alheios com a imagem em êxtase desses personagens em gozo, há um rompimento dessa fronteira que ruma para um processo de integração e conexão de mundos. 

Apesar de bastante carnal, Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo também é atingido por um forte sentimento de melancolia sobre a solidão da velhice. Desde quando vemos Jorge ter um cuidado na arrumação das toalhas dos quartos do motel, formando desenhos de cisnes, ele é apresentado como alguém que busca alguma forma de deixar um pedaço de si (de sua arte) para quem for fazer amor naqueles quartos, como se essa fosse a única forma de comunicação que consegue ter algum vínculo afetivo: deixando algo para os outros e não para si. Depois, esse aspecto se desenvolve principalmente quando a narrativa passa a mostrar seu protagonista não só escutando gemidos, mas também escutando as conversas íntimas entre parceiros, o que indica que ele também busca um suprimento emocional, indo além do canal. 

O filme tem um encerramento bem condizente ao explorar a tentativa de Jorge de mimetizar uma situação particular escutada por ele num dos áudios, envolvendo uma fala sobre um celular quebrado, só que narrado como algo poético dentro de uma história de amor. Na cena final, que é construída como um mini suspense, pois primeiro é escutado um som de martelo antes de se saber no que ele está batendo (o que tensiona a imaginação por alguns segundos, tal como o filme já vinha fazendo nesse jogo sonoro), revela-se Jorge brutalmente quebrando seu celular, como se buscasse, nesse gesto, extrair a fórceps o sentimento que a outra pessoa viveu. Aqui, o sofrimento interiorizado que o filme já vinha construindo bem a partir do ator Paulo Goya finalmente parece ser encarado frontalmente, de modo que sua solidão não possa mais ser ignorada.

 

*Filme visto na Mostra Foco, Série 1, dentro da Mostra de Tiradentes 2023, como parte da cobertura in loco do festival. Acompanhe nossa cobertura completa aqui.

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