Como diretores provenientes dos videoclipes e propensos a um uso cartunesco do corpo humano, Daniel Kwan e Daniel Scheinert alcançam em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo uma inusitada coesão, ausente no seu filme anterior, o horroroso Um Cadáver para Sobreviver (2017). Nesse último, ao tentar articular seu humor peculiar com um existencialismo pretensamente sério, os diretores não foram além do discurso aborrecido de autoajuda e reduziram as esquisitices que lhes são caras a um acessório sem graça e descartável. Já em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, eles encontram um equilíbrio difícil entre a comédia corporal estapafúrdia, um estilo eclético e de aceleração do ritmo narrativo e um direcionamento moral conservador (com uma leve atualização para o tempo presente), típico do cinema familiar feito nos Estados Unidos há muitas décadas.
Nesse sentido, aliás, é curioso que tantos associem o filme a algum tipo de dissidência do mainstream hollywoodiano. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem algumas referências ao cinema de Hong Kong e essa capa de maluquinho, que muito interessa aos Daniels, mas ela só pôde ser utilizada com tanta eficiência graças às outras duas características citadas. A incorporação de uma lógica audiovisual de estímulos sucessivos, que não permite a retenção de muita coisa (nem do drama, nem da comicidade, tampouco de uma compreensão clara do universo apresentado), coloca o filme em diálogo direto com a efemeridade das experiências audiovisuais nas redes sociais (o feed infinito).
O conservadorismo, por sua vez, marcante na busca de um meio-termo apaziguador diante do embate do tradicionalismo materno com o niilismo desagregador da filha, garante uma base confortável para Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo dar seus saltos de inventividade. Se os Daniels buscam algum estranhamento, é nessa acumulação de referências, estilos, piadas inusitadas, enquanto o valor atribuído às relações familiares é o mais careta possível. A iminência de um final feliz, que equalize as diferenças inicialmente inconciliáveis entre Evelyn (Michelle Yeoh) e sua filha Joy (Stephanie Hsu), jamais deixa o horizonte de expectativas espectatorial. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo escapa pela tangente de qualquer risco de uma conclusão incômoda, trilhando o caminho seguro do “amor vence tudo”.
Ainda assim, o filme é admirável por conseguir articular valores morais e estéticos tão difusos e fragmentários, característicos de seu tempo, inclusive o apelo nostálgico manifesto na recuperação de figuras como Yeoh, Ke Huy Quan, Jamie Lee Curtis e James Hong, numa narrativa que é mais que um mero emaranhado de estímulos. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, no fim das contas, diverte, envolve e, aqui e ali, comove um pouco, tudo o que Um Cadáver para Sobreviver não fazia.
As cenas com Evelyn e Waymond (Quan) na realidade alternativa em que ela se tornou uma atriz bem-sucedida são muito boas – no seu afã devorador de referências, ao se apropriar de uma atmosfera wongkarwaiana, o filme chega até a soltar uma daquelas frases lapidares do cinema ultrarromântico do diretor chinês: “Então, mesmo que você tenha partido meu coração outra vez, queria dizer que, em outra vida, eu teria realmente gostado de lavar roupas e declarar impostos contigo”. E o prólogo é todo bastante acertado, do plano de abertura melancólico, com a cantoria familiar despreocupada enquadrada num espelho, reflexo de uma felicidade prestes a ser posta em xeque, à sobreposição de dramas, personagens, objetos e situações pendentes que vão compondo uma sensação de desarranjo irresistível, insolúvel. Desde o início os Daniels estabelecem o trio principal como digno de empatia, pessoas falhas mas movidas por afetos e intenções positivos. Talvez esse seja o máximo de força dramática que os diretores conseguem alcançar. Mas, no caso de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, já foi o suficiente.