Fantasmas

Fantasmas

Laje indiscreta

Wallace Andrioli - 20 de novembro de 2023

Cabe uma parte significativa da história do cinema no mote do homem obcecado pela imagem da mulher amada, presente em Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira. Afinal, Um Corpo que Cai (1958), o maior filme já feito, é sobre isso, e são muitos os exemplos posteriores inspirados na obra-prima de Hitchcock. O crítico de cinema Luiz Carlos Oliveira Jr. fala da existência de uma “série-Vertigo”, ou seja, de um conjunto de filmes realizados nas décadas seguintes em si também obcecados, mas pelas imagens criadas por Hitchcock em Um Corpo que Cai. No caso de Fantasmas, seu protagonista oculto tenta, com os recursos disponíveis, como o investigador particular Scottie (James Stewart), concretizar visualmente um simulacro-prisão no qual ele já se encontra psicologicamente encarcerado.

Mas é possível traçar outras analogias entre o curta-metragem brasileiro e Um Corpo que Cai. Esse último, bem como Psicose (1960), estrutura sua narrativa sobre uma proposta de ruptura e recomeço. Localizados numa encruzilhada entre o clássico e o moderno, os dois filmes de Hitchcock avançam com suas histórias até um certo ponto, para repentinamente concluí-las (ou ao menos assim parece ser quando se chega a esse ponto) e reiniciá-las. Em ambos os casos, é a morte de uma personagem –Madeleine (Kim Novak) em Um Corpo que Cai e Marion (Janet Leigh) em Psicose – que possibilita esse restart.

Fantasmas faz algo mais ou menos parecido, ainda que por outro caminho. O filme começa numa conversa prosaica entre dois amigos, suas vozes em off sobrepostas ao plano estático de uma rua, no qual se destaca um posto de gasolina. Nesse primeiro momento, não é revelada ao espectador a origem dessas vozes, a localização de seus donos no interior do plano. Até a introdução de uma reviravolta significativa: os dois homens estão na verdade no contracampo, atrás da câmera, que foi posicionada na laje por um deles visando a capturar a passagem de sua ex-namorada, Camila.

O recomeçar de Fantasmas se dá em dois níveis diferentes. Primeiramente, pela mudança de ponto de vista narrativo. Repentinamente, o espectador é tirado de uma posição de observação distanciada de um espaço no qual transcorre um diálogo e levado a uma proximidade, quase confusão (no final se torna exatamente isso), com o olhar dos próprios personagens. O filme como que começa de novo, passa da terceira à primeira pessoa e a metalinguagem ganha relevo, uma vez que é explicitado o próprio mecanismo de criação daquelas imagens. Em seguida, a ideia de recomeço se materializa no gesto do protagonista de retornar à cena gravada para rever Camila uma, duas, três, quatro vezes.

A opção de Novais por encerrar Fantasmas durante essa repetição faz com que ela seja como que lançada à eternidade, confirmando a vigência de uma lógica da condenação. Esse movimento final do curta é, novamente, muito semelhante ao de Um Corpo que Cai, que também conclui sua narrativa de maneira inconclusiva, condenando o protagonista tragicamente à obsessão. Se o sujeito nunca mostrado de Fantasmas não chega a causar a morte da mulher amada, como faz Scottie com Madeleine, sua resposta à pergunta “agora que você viu, o que você vai fazer?” carrega um forte senso de tragédia, por se tratar de um caso explícito e doloroso de autoengano: “agora eu vou esquecer!”.

Segundo Oliveira Jr., a maioria desses filmes de alguma forma inspirados em Um Corpo que Cai tomam a obra-prima de Hitchcock como “um modelo de reflexão sobre o poder da imagem cinematográfica”, exemplar de uma fase da filmografia do diretor britânico marcada por forte consciência teórica e pelo desenvolvimento de uma dimensão meta-cinematográfica. Nesse aspecto, a filiação de Fantasmas a essa matriz se mostra ainda mais consistente: realizado no auge da “revolução do digital”, o curta-metragem funciona como uma potente reflexão sobre esse momento em que o barateamento dos custos de produção das imagens fílmicas possibilita que olhares antes invisibilizados tomem forma, inclusive para construir metanarrativas, reflexivas a respeito das possibilidades dos novos formatos e em diálogo direto com o cânone.

Fantasmas é, assim, um filme teórico, que explicita em seu próprio dispositivo os limites (a baixa resolução) e avanços (além do custo mais acessível, a visualização imediata das imagens produzidas, o que inclusive potencializa o estabelecimento de uma relação obsessiva com elas) das câmeras digitais portáteis. Vetor de uma das “mortes” do cinema, a “revolução do digital” pode ser caracterizada como mais um recomeço dessa forma de expressão artística, conforme defendem André Gaudreault e Philippe Marion. Recomeçar, repetir, reorganizar. No fim, a dimensão teórica desses filmes também se encontra nessa reprodução de uma sina do próprio cinema.

Thomas Elsaesser vincula esse momento de passagem ao digital aos primórdios do cinema. Um retorno não nostálgico, mas que mantém dois pontos de referência simultaneamente em foco: a “episteme 1900” e a “episteme 2000”, ambas muito possibilitadoras e igualmente marcadas por transformações tecnológicas e nas formas de olhar/registrar a vida. Fantasmas realiza esse movimento de maneira estrita em sua primeira parte, mais próxima de uma postura de observação pouco narrativa do mundo, característica do “primeiro cinema”. Mas avança, nesse retorno ao passado, para a modernidade cinematográfica, sempre em paralaxe, como proposto por Elsaesser: se abrindo, ao mesmo tempo, para a história do cinema e para um futuro de possibilidades.

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André Novais Oliveira faz filmes naturalistas, adeptos de uma contiguidade entre a realidade e a imagem-câmera, entre experiências próximas ao seu cotidiano e narrativas ficcionais. Planos longos, filmagens nas ruas de sua cidade, Contagem, seus próprios familiares e amigos como atores, histórias que reverberam aspectos prosaicos da vida diária. Novais se insere, assim, na longa tradição do realismo cinematográfico, marcada por uma relação mais direta entre a câmera e o mundo como sua matéria-prima. No interior dessa tradição, seus filmes não se mantêm totalmente próximos ao “primeiro cinema” dos Lumière, em razão de um sempre presente impulso ficcionalizante, apesar de possuírem também momentos bastante significativos de observação paciente do desenrolar da vida, que remetem à lógica das “atrações” que Tom Gunning localiza nesse cinema não narrativo dos primórdios; nem tanto ao neorrealismo italiano, em razão da ausência, neles, de uma maior intensidade dramática presente em obras como Roma, Cidade Aberta (1945), Ladrões de Bicicleta (1948), Umberto D. (1952) e A Terra Treme (1948); também se afastam de vertentes que apostam no naturalismo como artifício exibicionista, como o Dogma 95.

O cinema de Novais remete mesmo ao de Abbas Kiarostami, pela forma como incorpora elementos autorreflexivos numa diegese realista – que, à exceção de Quintal (2015), é sempre mantida intacta –, característica presente também na singela reprodução do mecanismo da câmera obscura no ótimo Pouco Mais de um Mês (2013). Esse último e Fantasmas têm um parentesco bem produtivo com O Vento nos Levará (1994), de Kiarostami.

No entanto, o diálogo aberto de Novais com Hitchcock em Fantasmas– além de Um Corpo que Cai, Janela Indiscreta (1954) é outra referência fundamental, por fazer da escopofilia uma lógica que organiza tanto a narrativa quanto a própria experiência espectatorial – localiza esse brilhante curta-metragem entre as tendências realista e formativa, de alguma forma sintetizando uma parte bastante significativa da história do cinema. Até porque ainda pode ser lembrada a semelhança com seu quase homônimo Fantasma (1922), de F. W. Murnau, também sobre um homem obcecado pela imagem de uma mulher. Como a carruagem guiada por Veronika (Lya de Putti) atropela o jovem Lorenz (Alfred Abel) na obra-prima de Murnau, Camila passa dirigindo e “atropela” o protagonista de Fantasmas.

Isso tudo em apenas 11 minutos.

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