As Bestas

As Bestas

Impasse e tensão

Wallace Andrioli - 22 de janeiro de 2024

Em Aquarius (2016), há uma breve cena na qual Clara (Sonia Braga) é abordada na praia pelo filho de um ex-vizinho. Kleber Mendonça Filho tem interesse primordial no embate entre a protagonista e a imobiliária que pretende comprar seu apartamento, mas nesse rápido diálogo o filme vislumbra a posição de quem está de fora da briga, pero no mucho, sofrendo os efeitos colaterais das escolhas de Clara: aqueles que moravam no mesmo prédio tradicional de Boa Viagem, Recife, venderam seus apartamentos para a tal empresa, mas não receberam a totalidade do valor em razão da resistência da protagonista em deixar o imóvel, impedindo a construção de um megacondomínio no lugar.

As Bestas, de Rodrigo Sorogoyen, é um filme que, de certa forma, expande esse pequeno momento de Aquarius. Sua narrativa gira inteiramente ao redor do conflito entre um casal de franceses (Denis Ménochet e Marina Foïs), que tomou uma decisão semelhante à de Clara, e alguns de seus vizinhos, num pequeno vilarejo rural da Galícia, Espanha. O diretor aposta num clima de tensão constante, que prenuncia uma tragédia sem apelar para algum tipo de escalada de ações absurdas e sem volta possível. Os personagens em confronto se detestam e se ameaçam com olhares, presenças inadequadas e indiretas provocativas, mas têm certo temor de chegar às vias de fato. Nesse sentido, persiste em boa parte do filme a sensação de que ainda dá tempo de guardar as armas e se acertar, o que, claro, aumenta o impacto da sequência em que esse status quo é efetivamente rompido.

Há uma bela cena em As Bestas que concentra toda essa combinação de tensão, expectativa de resolução razoável e frustração diante da intransigência das partes: Antoine (Ménochet) e Xan (o excelente Luis Zahera) conversam no bar do vilarejo, sob o olhar curioso do irmão do último, Loren (Diego Anido); Sorogoyen enquadra os três simultaneamente, os dois primeiros à frente, sentados ao balcão em plano médio, e o terceiro um pouco atrás, e o diálogo transcorre sem cortes. É a primeira (e única) vez que Xan se torna mais que uma presença incômoda e detestável, apresentando seus motivos para agir como age, visão de mundo, e mesmo sonhos. E vem dele a frase que sintetiza a lógica desse momento dramático poderoso, logo após o francês explicitar a impossibilidade do acordo almejado: “Ouça, por um momento, pensei que você assinaria, sairia daqui e tomaria no cu. Foi um belo momento.” Mesmo que mediadas pela brutalidade de um homem rústico e violento, estão ali a esperança da resolução de um problema, que poderia levar à realização de seus modestos planos profissionais e familiares, e a decepção com o engano.

E então, depois de uma hora e meia, o filme troca de protagonista. Nada de muito novo no front da história do cinema, claro, mas Sorogoyen faz um uso temático e dramático muito bom dessa ousadia narrativa inaugurada por Hitchcock em Psicose (1960). As Bestas passa a ser sobre mulheres lidando com as consequências catastróficas de escolhas feitas por seus homens (marido, filhos), e, mais uma vez, o diretor consegue criar momentos específicos, tensos e fortes, que sintetizam seus interesses narrativos: os embates de Olga (Foïs) com sua filha Marie (Marie Colomb) e com a mãe de Xan e Loren.

Aqui, Sorogoyen demonstra plena compreensão dos personagens, do que os separa e os une, transitando de uma conversa bem-articulada, extensa e dolorosa (registrada novamente num plano único e longo) para outra de poucas palavras e mais olhares de mútuo entendimento. No fim das contas, o que torna As Bestas um grande filme é essa postura relativamente generosa, mesmo com aqueles responsáveis por atos atrozes, aberta portanto ao humano em suas contradições e impasses. Característica manifesta também na forma, já que seus planos-sequência não nascem de um desejo exibicionista tout court, mas da busca por dar aos atores a possibilidade de expressar as nuances de figuras complexas lidando com situações difíceis.

Topo ▲