Era Uma Vez na América: quando o agora não é o suficiente

Era Uma Vez na América: quando o agora não é o suficiente

A ressignificação de espaços, pessoas e relacionamentos, os momentos que acabaram, mas não foram esquecidos e o tempo que não pode ser revivido ou revisitado, apenas sentido.

Matheus Fiore - 21 de maio de 2024

Era Uma Vez na América é um filme de ressignificação: espaços, pessoas, relacionamentos. De momentos que acabaram, mas não foram esquecidos. De rostos que marcaram, mas que não ficaram. De um tempo que não pode ser revivido ou revisitado, apenas sentido. De momentos perdidos na memória que se confundem e se atravessam e muitas vezes têm como único elo algo tão simples como o toque de um telefone.

A montagem de Era Uma Vez na América não segue uma ordem cronológica. Na verdade, é difícil até mesmo dizer com segurança que tudo o que vemos em tela são de fato memórias de Noodles, e não delírios, sonhos ou fantasias. O filme começa com o protagonista já em sua vida adulta sendo perseguido por mafiosos. Por mais que esse pano de fundo da máfia orbite a narrativa de América, não é meramente no mundo gangster que Sergio Leone está interessado. Enquanto caminha pelas ruas de Manhattan, Noodles olha para as calçadas e comércios não com medo de ser identificado, mas com carinho, com saudade. Não à toa, Leone nos estabelece nos espaços não por grandes tomadas aéreas e planos abertos, mas por zooms subjetivos do olhar dos personagens e por rostos. É um filme que alcança a grandiosidade mas sempre parte da intimidade de seus indivíduos e de seus sentimentos mais puros.

Essa relação de Noodles com seu passado orienta toda a estrutura do filme. Leone nos guia pelos acontecimentos de acordo com os momentos em que o protagonista de Robert De Niro passa por algum lugar marcante e lembra de seu passado. Não por acaso essa sensação de nostalgia é pulsante. Enquanto a infância do personagem é dourada, recheada de vivências, alegrias e descobertas, a vida adulta e a velhice são muito mais sombrias, calmas e silenciosas. Noodles está sempre a recordar desse passado, seja pelo acesso direto às memórias ou pela abstração do próprio presente quando fuma ópio ou até quando reencontra alguém de sua juventude.

Leone não esconde que essa saudade também está ligada a uma incapacidade de continuidade, de amadurecimento. Quando um cover de Yesterday de Paul McCartney toca enquanto o personagem se encara entristecido no espelho, fica claro que há uma saudade de tempos mais simples, da inocência e da animosidade de sua juventude, América, afinal, gira em torno da amizade de um grupo de moleques que se tornou uma grande máfia que dominou parte de Manhattan durante a Lei Seca. Os laços foram desgastados, a inocência foi violada, removida à bala das vidas da gangue, e a vida de seu principal membro, Noodles, foi afetada diretamente por sua prisão, após matar um policial.

Noodles, por ser o sujeito que ficou 15 anos encarcerado, obviamente é quem mais sente essa mudança no tempo. Quando sai da cadeia, não encontra exatamente seus amigos, inimigos e a menina que amava, mas pessoas diferentes, cujas vidas tomaram outros rumos, que estão em constante mudança e sempre prontos para partir. O reencontro com Deborah, seu amor de infância, por exemplo, talvez seja o momento mais doloroso da vida de Noodles, por ele perceber que enquanto quer mantê-la próxima e reviver o amor da juventude, ela, agora adulta, já está de malas prontas para embarcar para Hollywood e ter uma carreira como atriz. O sonho de Noodles continua preso às suas vivências de infância, enquanto o de Deborah é olhar para tudo isso como uma página do passado.

O retorno de Noodles ao mundo se dá de uma forma que, mesmo que o jovem Scott Tiler tenha sido substituído pelo adulto Robert De Niro, o jovem Noodles ainda é a figura central. É um homem que passou uma década e meia petrificado e, ao voltar a se mover, viu um mundo transformado. E pior: retornou a tempo de encontrar os últimos resquícios de seu passado ainda vivos, mas não a tempo de preservar o que eles foram e estão deixando de ser. A vida adulta traz suas cicatrizes e agora Max, Deborah, Joe e os demais são apenas rostos diferentes que remetem a pessoas que não existem mais, senão nas memórias.

A tragédia de Noodles é constatar que na sua juventude viveu os momentos mais felizes de sua vida. Momentos de amizade, medo, descoberta, companheirismo e amor, que não podem ser revividos no presente. Porque enquanto ele esperava, esperava e esperava, o tempo passava e o mundo mudou, e seus amigos seguiram por rumos diferentes do que ele gostaria e bem distantes do que ele está disposto a seguir. O presente se mantém como um lugar melancólico, de sobrevida, de lembrança para um passado dourado.

Ao homem adulto que ainda pensa e age como o menino que a vida o privou de ser por mais tempo, resta abstrair do presente, do mundo material e da realidade. Resta se dopar e reencontrar, nos sonhos, delírios e fantasias, a felicidade que só existiu no passado. Pois o agora se tornou uma imagem violada, estilhaçada. Pelo próprio Noodles, por seus amigos e pelo mundo. Só restaram lembranças que se perdem e se encontram, se cruzam e se anulam, que trazem dor, mas também conforto. A realidade é a ferida, e a abstração dela, a saída.

Texto originalmente escrito para a Contrabando

 

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