Disparo para Matar: “ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte…”

Disparo para Matar: “ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte…”

O deserto e a história daqueles que morreram sob seu solo.

Victor Castro - 27 de junho de 2024

Dedicado a Roger Corman

Muitos já passaram pelos lugares que habitamos. Em cada solo que  encostamos os pés, uma macula eterna é criada sob a constituição de sua forma. Corpos que foram absorvidos pela matéria daquele espaço, vidas passadas que podem ser facilmente encontradas ao olharmos com  atenção pela constituição de um monte de areia, ou ao sentirmos a brisa de um vento rondando nossos rostos. Por onde andamos, o sangue daqueles que lá viveram já se transformou em pegadas sob a areia, pistas falsas que se travestem como guias nesse labirinto a céu aberto, e que rapidamente se mostram como parte indissociável dessa arrebatadora paisagem fúnebre.

As pegadas na areia filmadas por Monte Hellman em Disparo para Matar podem pertencer tanto a seres ancestrais, marcas de pessoas que anteriormente viveram e morreram sob o solo dessa terra, como podem ser rastros de outros cowboys, de guerreiros errantes que também foram captados por um olhar desbravador escondido atrás da lente do cinema.

Disparo para Matar não foi a primeira vez em que o cineasta peregrinou pelas dunas com sua camera. Disparo foi feito junto com outro filme:  A Vingança de um Pistoleiro. Gravados em sequência, ambos são fruto da filosofia de produção do Roger Corman, que havia descoberto Monte Hellman ainda quando esse era apenas um homem do teatro- o primeiro a adaptar Beckett nos Estados Unidos, vale ressaltar- e que o convenceu a fazer dois westerns se utilizando do mesmo orçamento, da mesma equipe, atores e do mesmo espaço: o deserto do Utah. Isso acabou criando uma continuidade implícita entre os dois filmes, uma sensação de que um é o complemento do outro, ou o espelho. É difícil não lembrar de Jack Nicholson andando para o horizonte ao final do primeiro filme quando o vemos sair por meio das plantas na noite em Disparo, completamente imerso no espaço.

Afinal, se vemos o movimentar das sombras pela paisagem, se sentimos que outros já foram tocados pela mesma violência do sol, deve-se principalmente por Hellman construir seu filme a partir da lógica do “depois”; por fazer um filme cujo ato de andar pelo deserto é equivalente a ler o epilogo das histórias cravadas em cada grão de areia, por fazer-nos pisar em um chão que sabemos estar longe de ser virgem.

Quando chegamos na obra tudo já aconteceu: duas pessoas foram mortas em uma cidade- uma delas talvez fosse uma criança- e nada vemos sobre os detalhes. A única coisa que encontramos ao adentra-lo são os olhos do cavalo de Warren Oates, o primeiro a perceber algo sob os rochedos daquele deserto; uma presença evocada pelos cantos de cada frame. Uma presença trazida à tona pela sensibilidade geográfica de Hellman, que com sua câmera filma as marcas pela terra, através de uma apreensão material da sua constituição. Um filme criado a partir daquilo que foi deixado para trás e que permanece como um constituinte da paisagem local.

Na realidade, o ato de abandonar é um motif dentro da obra. Vários momentos da trama se baseiam no ato de largar os cavalos, em jogar fora as garrafas de agua, em se livrar de armas de fogo. Conforme os personagens adentram pelo deserto, cada vez mais a vegetação verde vai se tornando rara e o espaço se mostra mais definhado. Se Disparo para Matar é uma odisseia, então é uma odisseia árida, onde o mar é substituído por dunas e o navio foi largado na areia.

Até porque, enquanto Odisseu ficou dez anos vagando pelo oceano, para finalmente ser liberado por Poseidon e conseguir voltar para Ítaca, não existe local para se retornar no filme de Hellman. O deserto é todo lugar, ao mesmo tempo que não é lugar algum. Qualquer casa que os personagens podiam ter antes da aventura desapareceu no momento em que botaram os pés no deserto, quando adentraram em um labirinto de areia que suga a alma perdida dos peregrinos para eternamente fazerem parte de si. O passado de cada um agora não passa de mais um pó flutuando pelo deserto.

A comparação aqui com a obra de Homéro é tentadora demais para ser esquecida rapidamente. A Odisseia é fruto de anos do desenvolvimento dos mitos da sua terra, um fruto das constituições mitológicas de sua sociedade por aqueles que narraram essas histórias, pela lembrança dos ouvidos que tão atentamente as ouviram por séculos e as repassaram para a cultura popular centenas de anos antes da sua derradeira escrita. A obra do poeta grego é então construída a partir de uma consciência histórica material, que ganha forma em cada palavra escrita por Homéro no papel.

Uma obra de arte é fruto de uma longa jornada, um desenvolvimento que começa muito antes do nascimento do próprio artista e que toma forma no então presente sem nunca esquecer do caminho que tomou até chegar nele. Não acho errado afirmar que a narração da viagem de Odisseu por Homéro é tanto um epilogo em forma de rememoração quanto é uma rememoração em forma de epilogo. É a materialização de uma consciência arqueológica de natureza semelhante àquela encontrada na obra de Hellman, mas que de maneira alguma é um caso isolado na história do cinema.

Roger Corman não conseguiu vender o filme para nenhuma distribuidora norte-americana, o que obrigou o produtor a oferece-lo para exibidores na Europa. O mesmo continente que, apenas doze anos antes, havia presenciado Roberto Rosselini filmar Ingrid Bergman andando sem rumo pelas catacumbas e sepulturas de Nápoles, enquanto pensava sobre um casamento cujo início da possível ruína acontecera muito antes do filme sequer começar. O mesmo diretor que filmou uma criança alemã se jogar de cima dos destroços de um prédio, marcas de uma guerra que nunca vimos mas que está presente em cada enquadramento do filme. Entre as pegadas seguidas pelo grupo de Warren Oates em Disparo para Matar, estão as pegadas sepulcrais do próprio Neorrealismo Italiano, que ressoa toda vez em que a presença de um cadáver não pode ser separado da própria terra ao seu redor. A memória do espaço real como a matéria prima da criação de sua Mise em Scene. Pois se John Ford filmou Monument Valley e Bud Boetticher filmou Lone Pine, Hellman filmou a matéria do deserto de Utah: sua areia, suas pedras, o seu solo. Hellman filmou a sua formação.

A terra sob os corpos dos atores é a base da existência de cada quadro em Disparo, a verdadeira protagonista da obra. É ela quem aparece em todos os frames, é aquela que guia as composições espaciais do diretor. O palco por onde os cavalos cavalgam e o cemitério onde são enterrados.

Mas será que cemitério é a maneira correta de se referir ao labirinto que aprisiona as personagens? Que terra é essa cujo céu cobre a composição de cada quadro mas que ao mesmo tempo parece tão distante de tudo? Que terra é essa cujo céu é oco, duro como uma grande porta trancada, impossibilitando qualquer um de entrar em seu reino? Qualquer associação ao inferno estaria equivocada, visto que a possibilidade da morada em seus domínios só pode existir- e o mesmo vale para a moradia no paraíso- após a finalização de uma jornada, de um objetivo. Independente do carater moral de seus atos, é necessário que eles sejam completados para que um ser possa passar efetivamente à vida em outro plano. E o que são os personagens do filme de Hellman senão seres cujas pendencias terrenas nunca foram quitadas? Seres que abandonam assim como são abandonados. Seres que vagam a ermo em uma missão fatalista, onde o destino mais provável é cair e ser consumido pelas areias desse purgatório.

Sim, purgatório. Talvez o verdadeiro nome desse labirinto composto de figuras abandonadas. Figuras que vivem em um limbo da existência graças a indefinição do estado entre a vida e a morte, que têm consigo a necessidade de escape. Algo que parece existir tanto na personagem de Millie Perkins quanto naquele que, ao final, descobrimos ser perseguido por ela: o irmão gêmeo de Warren Oates.

E é assim, a partir da existência inesperada de um duplo, que voltamos a ideia de continuidade entre A Vingança de um Pistoleiro e Disparo para Matar, a partir da relação espelhada que o início de um tem com o final do outro. Se o primeiro começa com os assaltantes descendo por uma ladeira do céu para o deserto, o final de Disparo é justamente uma tentativa de volta. O duplo de Oates tentando subir em direção ao paraíso proibido, e sendo impedido pelo tiro vingador de Perkins. Tiro esse cujo resultado nunca é visto, ou pelo menos não diretamente. O que vemos é apenas o rosto desolado de Oates ao não conseguir impedir a vingadora, e não é necessário mais nada para entendermos que a morte de seu duplo também é a sua morte.

Muitos filmes acabam com um fade out para uma tela preta, mas o que temos no filme do Hellman é diferente. Após o plano de Oates deitado sob a ladeira e olhando para a câmera, cortamos para a imagem de um apequenado e ferido Jack Nicholson se arrastando pelas poderosas dunas do deserto, que agora ocupam todo o enquadramento, junto aos dizeres “the end”. Até que, como um estalo divino, vemos reluzir sobre a tela uma poderosa luz branca que vai pouco a pouco anexando sua textura às silhuetas da imagem, fazendo tudo se transformar em um único e uniforme clarão.

Seria esse o sinal do fim de um ciclo ou o começo de outro? Perkins cumpriu seu objetivo ao matar o gêmeo, mas não sem antes se anexar aquela terra maldita. Ela seguiu cada pegada, cada rastro, enquanto deixava os seus próprios. Se Walter Benjamin dizia que todo documento de cultura é um documento de barbárie, então os tiros dados por Millie Perkins no solo desértico, supostamente como maneira de marcar seus passos pelo local, não poderiam ser mais sugestivos quanto as intenções do cineasta: cada partícula daquela areia guarda consigo o seu próprio documento de violência.

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