O bom filme de zumbi vai além da violência e da ação desenfreada. Há de ter capricho principalmente o ritmo, já que as narrativas costumam ser calcadas em fugas e luta por sobrevivência, que podem vir a ser repetitivas em suas fórmulas. Mas o ótimo filme de zumbi entrega mais. Entrega uma alegoria com algum problema latente na sociedade, se tornando um documento de seu tempo. Algo facilmente observável ao constatarmos o forte teor político e de crítica religiosa presente nas obras de George A. Romero, o grande cineasta do gênero.
Invasão Zumbi tira de letra esses requisitos e entrega um thriller de ação com os necessários elementos de terror e drama e uma sutil mensagem de união e respeito. Em um tempo onde a humanidade é tão materialista e individualista, é louvável ver tal preocupação em um blockbuster e bacana que seja em um mercado que não Hollywood.
O filme conta a história de Seok-Woo, um empresário que, no dia do aniversário de sua filha, Su-an, deve leva-la até sua mãe, que mora em outra cidade. Enquanto se encaminham para o terminal de trem, um vírus que transforma as pessoas em zumbis se espalha pela cidade, e não tarda para que algum infectado esteja a bordo do trem dos protagonistas.
Há uma longa introdução antes de qualquer cena de ação. Mesmo baseado em vários clichês, o relacionamento de Seok-Woo e Su-an é bem estabelecido principalmente pela sincera atuação da atriz mirim. A frieza no olhar do sempre ocupado pai também reforça o afastamento existente entre eles. A direção é inteligente ao sempre colocar o pai distante da filha nos enquadramentos, mesmo antes da invasão, algo que contribui ainda mais para o estabelecimento da distancia.
Conforme o filme se aproxima do primeiro ponto de virada, a tensão é introduzida pelo fantástico trabalho de som. Cada pegada, porta, celular e até respiração têm seus barulhos enaltecidos de forma crescente. Quando a invasão no trem está prestes a acontecer, nota-se a diminuição desses sons e introdução de uma sutil trilha sonora, até que o primeiro zumbi aparece com grande ênfase no barulho de gemidos e ossos estalando. Mesmo não dando destaque à figura dos morto-vivos, a apresentação destes é perfeita e impactante na narrativa. Os ângulos escolhidos para retratar os primeiros zumbis os tornam bizarros e imponentes visualmente, dando destaque sempre para os corpos tortos, descontrolados e bestializados.
Com a chegada dos zumbis, há uma fantástica evolução no ritmo da trama. Todos os elementos de um bom filme de ação e terror estão presentes: os cortes rápidos, a direção dinâmica, o uso do som para criar intensidade nos combates e a boa parceria entre fotografia e direção para construção de um ambiente claustrofóbico, ameaçador e de uma mise-en-scene limpa e rica. Todo o ambiente dos vagões é transformado completamente depois dos primeiros ataques, mas nunca de forma óbvia e apelativa e sim usando truques de luz e posicionamento de câmera, criando um clima mais sombrio.
Como quase toda obra, porém, Invasão Zumbi tem seus pontos baixos. O roteiro abusa de clichês na construção de personagens, e, à serviço da evolução da trama, insere antagonistas demasiadamente caricatos, que estão lá unicamente para proporcionar mais adversidades para os protagonistas. Por outro lado, todos esses personagens, mesmo que estereotipados, funcionam como símbolos da sociedade do século XXI. Mesmo não aprofundando, é clara a mensagem da necessidade de união em tempos de crise.
Os passageiros do trem só começam a ver uma perspectiva de salvação quando passam a abandonar seus egoísmos e agir em equipe, assim como o protagonista tem um crescimento imenso ao ver sua vida em risco e passa não só a se importar mais com as outras pessoas, mas a sentir culpa por ter falhado como pai. Já perto do terceiro ato, Seok-Woo se vê criticando atitudes que ele mesmo apresentou no primeiro, mostrando como uma situação extrema é capaz de transformar as pessoas e aflorar o melhor (ou o pior, como no caso do homem que tenta manipular a equipe que comanda os vagões) no ser humano.
Se por um lado o roteiro tem seus tropeços, a direção é o grande trunfo do longa. Além de conferir dinamismo e sofisticação à uma trama não muito original, com muita inteligência torna o filme mais humano do que o que se espera de um blockbuster. Não há abuso de gore com mutilações e tripas decorando o ambiente, o maior impacto está na sugestão, como no poético momento em que acompanhamos a conclusão da história de um casal e somos privados da imagem, sendo arrebatados apenas pelo som. E os principais close-ups do longa não são em órgãos ou zumbis, mas em rostos humanos, aliviados, felizes, tristes ou amedrontados.
Outro grande trecho da obra é quando acompanhamos uma cena apenas pela sombra no chão do personagem envolvido, quando a direção foge do lugar comum e, com auxílio de pequenas lembranças inseridas pela montagem, fecha um arco narrativo com uma enorme carga dramática, e com um forte sentimento de alívio e redenção. O sorriso estampado no rosto, precedendo o ato, é um dos momentos mais simbólicos do cinema em 2016, e extremamente ousado por, em um filme massificado, não expressar com palavras o mais importante sentimento expresso no longa.
Sem ser muito expositivo e tendo uma parte técnica irrepreensível, Invasão Zumbi está entre as melhores obras de 2016. O longa é capaz de agradar o espectador mais casual pelas empolgantes sequências de ação e intensos momentos dramáticos, mas é também cheio de detalhes capazes de levar o público mais atento ao deleite com trechos extremamente poéticos, sensíveis e que enriquecem muito a narrativa. Como todo bom de filme zumbis, tem como escopo nós, pessoas, e como afloramos nossas faces ocultas ao nos vermos em perigo.