O atestado de competência para uma adaptação literária é despertar em quem a assiste o desejo de ler o(s) livro(s) que lhe serve(m) como base. Até o fim desta crítica, direi se Desventuras em Série, nova produção original da Netflix, me despertou tal desejo. Os episódios estão disponíveis desde a última sexta-feira. Já assistiu? Então, vem comigo!
Parece que foi ontem, mas é de 2004 a adaptação cinematográfica estrelada por Jim Carrey e dirigida por Brad Silberling. O filme não fez barulho na época e, eventualmente, se tornou cult. Na onda de transformar filmes em séries e retomar projetos abandonados (o filme só cobre 3 dos 13 livros da série), a Netflix resolveu investir algumas fichas na obra de Lemony Snicket. O produtor Neil Patrick Harris disse que esta é uma redenção para Snicket e o diretor Barry Sonnenfeld, pois ambos abandonaram o filme de 2004 por “razões criativas”. Mas é impossível ver o Conde Olaf de Harris sem pensar em Jim Carrey. Se isso é bom ou ruim, fica a cargo do espectador decidir.
Diferente da grande massa de conteúdo voltado para o público infantil, Desventuras em Série tem um humor voltado para os adultos. A ironia de alguns diálogos chega a ser cáustica. Não serão poucas as vezes em que as crianças se perguntarão “qual é a graça” vendo seus pais rindo. O tom absurdo da série, que a olhares desatentos soa como puro nonsense, é uma crítica mordaz ao mundo pós-moderno.
Violet (Malina Weissman), Klaus (Louis Hynes) e Sunny Baudelaire (Presley Smith) são informados pelo banqueiro Senhor Poe (K. Todd Freeman) de que seus pais, Bertrand e Beatrice, morreram num incêndio, que também destruiu sua casa. Como responsável pela fortuna da família, Poe deve cumprir o testamento dos Baudelaire e levar os órfãos para seu guardião. Surge Conde Olaf, um ator de qualidade duvidosa que alega ser o guardião dos Baudelaire, quando seu objetivo claramente é se apropriar da fortuna que eles herdarão quando Violet alcançar a maioridade. Os acontecimentos são contados pelo próprio Lemony Snicket (Patrick Warburton). Este é um narrador onisciente indireto, pois ele não interfere na história, mas aprendeu sobre ela fazendo pesquisa de campo. Ele também é apaixonado por Beatrice, a quem dedica todos os capítulos (de uma forma mórbida e cômica).
Existem duas maneiras de contar uma história: revelando a trama conforme o enredo avança ou adiantando o final. Na trilogia clássica de Star Wars (Episódios IV, V e V), precisamos acompanhar os filmes para saber se a Aliança Rebelde e Luke Skywalker derrotarão o Império; já na trilogia prequela (I, II e III), sabemos desde o começo que Anakin Skywalker se tornará Darth Vader em algum ponto. Este exemplo é oportuno porque mostra que a escolha determina o clímax. George Lucas fracassou nos prequels por oferecer como grande revelação que Anakin se converteu para o lado negro da Força. Mas isso todos nós já sabíamos. Os eventos que o levaram para este caminho é que deveriam ser melhor desenvolvidos.
Mas nenhum de nós está aqui para discutir porque estes filmes são ruins. Todos nós já sabemos – ou deveríamos saber – disso. Voltemos para a série da Netfix.
Desde a primeira linha, Snicket pede que nós abandonemos a história. “Ela não tem um começo feliz, não terá um final feliz e poucas coisas felizes acontecerão entre o começo e o final”. Nós estamos avisados desde o título que infortúnios se seguirão. O que nos prende a cada episódio é como tais infortúnios transformarão a vida dos órfãos. E é precisamente nisso que Desventuras em Série se foca. De forma intencionalmente óbvia, identificamos quem são os vilões e a fotografia é um aspecto técnico digno de nota para reforçar esta ideia de obviedade enclausurante.
Os personagens também não são caricatos à toa, pois são alegorias: Poe é um banqueiro incapaz de ver qualquer coisa além de dinheiro. Sua esposa Eleanora é uma jornalista que não se importa com a verdade, mas com boas manchetes. A juíza Strauss representa toda a frustração de quem investiu na carreira em detrimento da vida pessoal e não encontrou felicidade na escolha. Já Olaf e seus esquemas são uma amálgama dos sete Pecados Capitais. Os adultos, cegos por ambições e dissabores, são incapazes de ver a verdade óbvia diante de seus olhos. Apenas as crianças percebem o que está acontecendo, e isto também é uma crítica à forma como ignoramos certas vozes por não terem “credibilidade”.
O roteiro aposta em piadas recorrentes, como a explicação jocosamente exagerada do significado de termos como “ironia dramática” ou quebras de quarta parede, com destaque para uma hilária declaração de amor do Conde Olaf aos serviços de streaming como a Netflix, feita diretamente para o espectador. Como o objetivo de Desventuras é fazer o plot caminhar, o uso desmedido de deus ex machina não incomoda. Klaus sempre encontrará uma resposta em um livro, Violet sempre inventará algo, Sunny sempre morderá algo, Olaf sempre surgirá em algum disfarce ridículo com algum plano bisonho para se apoderar da guarda das crianças e Poe nunca perceberá. A já citada obviedade enclausurante parece surreal, mas nossas vidas não são assim mesmo, de alguma forma?
Apesar de parecer uma paródia de qualquer coisa feita pelo Tim Burton (a estética da série lembra demais a mediana Pushing Daisies, que já parecia algo para o que não conseguiram contratar o Burton original) e lançar mão de muitos clichês narrativos, Desventuras em Série faz de forma competente aquilo a que se propõe. Mira num segmento de nicho e acaba atingindo um público muito maior (o box com os 13 livros foi o produto mais vendido da Amazon no dia seguinte à estreia). Ao se permitir uma experiência mais próxima da literatura no audiovisual, acaba despertando o interesse na obra original, algo digno de elogio. A menos que os resultados sejam muito ruins – o que não parece ser o caso –, teremos mais uma temporada. Os Órfãos Baudelaire vieram para ficar. Assista clicando aqui.