Confiar na inteligência do público nem sempre funciona. Numa época em que o espectador cada vez menos gosta de pensar a arte, preferindo obras com narrativas simples e roteiros que entregam toda a trama mastigada, fazer um filme como Loving é uma escolha admirável. Neste longa, acompanhamos a história real Richard e Mildred Loving, interpretados por Joel Edgerton e Ruth Negga, que vivem um casal cujo amor é proibido pela lei anti-miscigenação existente em alguns dos estados dos Estados Unidos no fim dos anos 50.
Desde o primeiro plano, Jeff Nichols acerta ao ser discreto na condução de sua narrativa. O filme abre com um diálogo emocionado entre o casal principal sem que haja nenhuma explicação por diálogos sobre o motivo do entusiasmo. Está tudo lá, por imagens. No corpo e nos rostos dos personagens. Já um prenúncio da narrativa que confiará na dedução de seu público para funcionar. Desde esse momento inicial, já podemos destacar o uso da fotografia para dar o tom do relacionamento dos protagonistas: se encontrando escondidos, à noite, sob pouca iluminação, retratando bem o amor impossível por culpa do racismo da sociedade e da legislação da época.
Por serem um casal composto por uma negra e um caucasiano, não tarda para que as autoridades fiquem sabendo de seu casamento e tentem separar Richard e Mildred. A sentença, então, é bani-los do estado por vinte e cinco anos. O responsável pela denuncia, um personagem próximo ao casal, tem sua escolha evidenciada quando a direção destaca o olhar desconfiado diante do amor dos protagonistas (e aqui tomarei a liberdade de chamar tanto Richard quanto Mildred de protagonistas, pois a alma do filme é o amor entre os personagens). A partir de então, a obra acompanha a luta dos Loving por igualdade perante a justiça e a busca por seu lar.
Por se tratar de um drama real, Loving acompanha a história do casal em diferentes momentos de sua trajetória, o que em certo ponto se torna um problema, já que a trama exige que haja saltos rápidos que minimizam momentos importantes da vida dos personagens, como o relacionamento com seus filhos. A falta de foco rompe o ritmo e deixa a narrativa confusa. Tal fato, em contrapartida, acaba dando espaço para o destaque da melhor qualidade do filme: o amor entre Richard e Mildred.
Inabalável desde o primeiro segundo de projeção, percebemos que a força do amor entre os protagonistas funciona quase como um personagem independente, que guia a trama. Amor este que está presente desde o carro de Richard, que tem as cores preto e branco dominantes, até sua vestimenta, que em boa parte da projeção se sobressai com suas camisetas e jaquetas vermelhas, materializando o amor que ele não expressa em palavras.
O filme também é feliz ao construir o isolamento dos personagens, totalmente desamparados diante da lei racista, com movimentos de câmera. Há de se ressaltar, por exemplo, a cena em que o casal se despede do advogado: enquanto Mildred olha para o chão, imóvel e desesperançosa, Richard olha em volta, procurando algum amparo ao seu redor, até perceber que está sozinho e acompanhar sua esposa e copiar seu olhar cabisbaixo. Tudo isso retratado por uma câmera que se afasta lentamente por zoom-out, ressaltando a solidão dos Loving.
As atuações de Edgerton e Negga são memoráveis e merecem entrar para a história. Acompanhando o discreto roteiro, os personagens conseguem transmitir emoção com olhares profundos, perdidos, desorientados e muitas vezes desamparados. O semblante perdedor e tímido de Richard é um triste reflexo do mundo que o tempo todo julga e não aceita suas escolhas. Já Negga é o elo que mantém a família unida, sempre mais otimista e que, por trás do sotaque interiorano e timbre de voz tímido, esconde uma inesgotável força de vontade.
Também notável é a felicidade da direção ao construir o imensurável amor entre o casal sem necessidade de cenas de troca de carícias ou beijos. Apenas as boas atuações e a condução de Jeff Nichols são suficientes para notarmos a ligação entre Richard e Mildred. Observe, por exemplo, como os personagem tendem a se inclinar na direção um do outro, e como quando um deles conforta o companheiro, o que está consolando exibe semblante tão ou mais triste do que o outro, criando um fortíssimo senso de união. Os momentos de maior tristeza de Richard são os que ele vê sua esposa sofrendo, e vice-versa.
Perto da conclusão do filme, quando a briga judicial dos Loving passa a interferir em sua vida pessoal, há um preciso detalhe no figurino que constrói muito bem a visão que Richard tem da situação. Ao invés das usuais camisas xadrez vermelhas e brancas, há uma vestimenta parecida, mas com traços azuis entre o vermelho, mostrando como a tristeza trazida pelo caso pesa na vida do personagem.
As cores, aliás, voltam a marcar presença nos carros dos personagens. Se antes Richard usava um veículo preto e branco, na segunda parte de Loving o personagem utiliza um todo preto, mas com um forte vermelho nos bancos internos, sinalizando a força do amor presente no âmago do personagem. Já próximo ao ato final, há ainda dois memoráveis uso das cores para enriquecer a narrativa. O primeiro é quando, após um momento de insegurança e fraqueza, Richard veste sua jaqueta vermelha e caminha na neve, representando como o amor o ergue diante da frieza do mundo. O segundo é, talvez, o mais bonito do filme, quando ainda aguardando o resultado do julgamento, em uma cena de poucos segundos, Mildred utiliza sua máquina de costura para bordar um pano verde, ressaltando sua esperança na vitória e em um futuro melhor.
Loving é um filme de minúcias. Uma obra de arte de primeira grandeza, que mesmo tendo pequenos tropeços em sua estrutura, se diferencia pelos detalhes construídos com carinho tanto pela fotografia, quanto pela direção de arte, direção e magníficas atuações. Bom, belo e necessário. É lamentável que tenha acontecido algo tão sombrio em um período tão recente, mas que bom que pudemos evoluir e fazer disso não só uma aula de cinema, mas também uma lição de humanidade.