O clima de tensão trazido pela união do som ambiente com uma trilha sonora soturna e planos com zoom lento já foram essenciais nos momentos que precedem os primeiros contatos da humanidade com alienígenas em Arrival. E tais escolhas técnicas já haviam sido empregadas pelo diretor no excelente Prisoners, três anos antes do lançamento da obra-prima de ficção científico-filosófica do canadense. Traduzido para Os Suspeitos (em uma das piores adaptações dos últimos tempos, diga-se de passagem), vemos nesse suspense uma aula de cadência rítmica com um casamento perfeito entre um roteiro recompensador e uma direção extremamente precisa. Na trama, as famílias Dover e Birch confraternizam em casa até perceberem que Anna e Joy, as caçulas, desapareceram sem deixar vestígios. Entra em cena, então, Loki (Jake Gyllenhaal), detetive que lidera a investigação e a busca pelas crianças. Paralelamente à busca policial, Keller Dover (Hugh Jackman) lidera sua própria procura pelo sequestrador e por sua filha.
Villeneuve dá o tom de sua narrativa desde os primeiros momentos do filme. Notamos, por exemplo, o uso de uma fotografia mais acalorada, de cores avermelhadas, quando as famílias estão unidas. Tal escolha de paleta de cores também pode ser percebida na introdução de Loki, quando o personagem janta em um restaurante francês até que recebe o chamado para investigar o desaparecimento de Anna e Joy. Após o sequestro, porém, cores mais escuras, de tom gélido e com planos mais fechados e opressores dominam a cena. É perceptível também o capricho de Denis na construção da mise-en-scene, retratando as famílias sempre unidas, posicionando Keller abraçado com sua filha e sorridente, trocando piadas, carícias e cativando a empatia do público na postura de pai zeloso e amoroso, totalmente contrastante com o homem sedento por justiça mas cego por ódio que mais tarde se tornará.
A atuação de Jackman, aliás, é um dos pilares na manutenção da tensão e dramaticidade da narrativa. Extremamente emotivo e explosivo, Keller sempre demonstra desamparo e desespero diante da situação, incapaz de passar tranquilidade para sua família, que aos poucos rui enquanto o pai persiste na busca por Anna. Sua relação com Loki é, inclusive, assustadora em cenas como quando o detetive persegue Keller. Ao notar que o policial está “perdendo tempo” seguindo o pai da menina desaparecida, Dover se irrita profundamente e intensifica sua pressão sobre o personagem de Gyllenhaal. O resultado da relação destes dois personagens é a criação de um segundo grupo de prisioneiros. Se Anna e Joy são prisioneiras físicas de seu sequestrador, os Dover, os Birch e Loki são prisioneiros psicológicos de seus medos e deveres, tendo sempre o medo do que pode ter acontecido às crianças (no caso dos pais) e de falhar em sua missão de resolver o caso (Loki).
O roteiro ainda desenvolve um terceiro resultado das “prisões” dos personagens. Se adiante descobrimos que alguns dos possíveis envolvidos no sequestro possuem suas próprias “prisões” mentais (o personagem de Paul Dano, por exemplo, possui o QI de uma criança de dez anos), descobrimos também que seus problemas são resultantes de prisões físicas que estiveram em momentos anteriores da vida. Do outro lado, vemos Keller e Franklin (Terrence Howard, o pai de uma das meninas), presos em suas “prisões psicológicas” lidando com a situação com a construção de encarceramento físico (os pais sequestram e torturam um dos suspeitos em busca de respostas). Tal dinâmica é importante não só para mostrar a humanidade presente nos “vilões”, como para estabelecer a imperfeição dos “heróis”, que diante do terror, cedem à seus instintos violentos e irracionais.
Mas o script de Aaron Guzikowski vai muito além da dinâmica dessa relação colateral e impressiona pela vastidão de temas que sugere superficialmente, como a relação humana com seus mitos religiosos quando Keller se aprofunda nas razões que motivaram os sequestros. A estrutura textual também é sublime. Por ter 155 minutos de metragem, o filme poderia facilmente tornar-se cansativo ou enrolado em determinado momento, mas Guzikowski insere os gatilhos que alavancam a narrativa sob o espaçamento ideal, deixando cada acontecimento do filme respirar e ecoar pelos personagens e suas tramas, até que o próximo grande momento chegue e transforme novamente o filme. Fazendo algo semelhante ao roteiro do excelente e incompreendido Zodíaco, de David Fincher (que também trazia Gyllenhaal em grande forma), tornando a obra instigante ao manter o tom policial com leves sugestões de envolvimento de elementos extra-físicos e psicológicos. Para coroar, Aaron ainda planta as pistas necessárias para criar a relação descoberta-recompensa com o público, utilizando elementos apresentados no primeiro ato para explicar e desenvolver importantes revelações ao longo da projeção. Perceba, por exemplo, como a música cantada pelas crianças é um dos elementos que ajuda Keller a identificar o possível responsável pelo sequestro.
Voltando à parte visual de Prisoners, há de se destacar o inteligente uso de planos que colocam galhos secos por todos os cantos do quadro, em alguns momentos até sobre o perfil dos personagens, escolha visual que pode ser interpretada tanto como uma alegoria à situação de desgaste emocional dos personagens (a árvore sem folhas geralmente simboliza personagens desnudos, vide Sonata de Outono, de Ingmar Bergman), quanto como um elemento que simbolize as conexões do filme, já que nos é estabelecido ao longo da narrativa que há ligações entre todas as pontas “soltas” do roteiro, mesmo as que se desconectam da narrativa principal (como a história do padre). Tal recurso visual é utilizado de forma recorrente e de forma mais intensa nos momentos de desespero e desamparo dos personagens. Perceba, nos dois frames abaixo, momentos em que tais galhos sem folhas ocupam espaço significante do plano quando vemos Keller e Dover fragilizados diante do caso.
Capazes de prender a atenção de seu espectador por todos os 155 minutos do filme, Denis Villeneuve e Aaron Guzikowski nos entregam uma verdadeira aula de suspense pela manutenção de um clima denso, opressor e de constantes descobertas e recompensas ao público quando este é atento ao que lhe é exposto. Mesmo não tendo ganhado o devido reconhecimento do público e da academia (apenas o diretor de fotografia Roger Deakins foi indicado ao Oscar), Prisoners é uma belíssima adição à já surpreendente filmografia de Villeneuve, que com a tríade O Homem Duplicado, Os Suspeitos e A Chegada, demonstra não só um exímio domínio sobre as expectativas e sentimentos de quem o assiste, mas um talento muito acima da média atual. Que o canadense possa continuar a ótima forma, pois mantendo o ritmo, não tardará para consolidar-se como um dos grandes cineastas dos últimos tempos. A boa arte agradece.