A arte como pornografia aos olhos do digital

A arte como pornografia aos olhos do digital

Reflexões sobre uma faceta oculta do cinema brasileiro

Igor Nolasco - 1 de julho de 2021

“Se o espectador é um voyeur o crítico é um tarado completo. E quem vê, já viu, critica.” — Torquato Neto, 1971.

Em seu romance “Solução de Dois Estados”, publicado em 2020 pela editora Companhia das Letras, o escritor Michel Laub apresenta ao leitor a personagem de Raquel, artista que se utiliza de suas performances para expurgar traumas de sua adolescência e vida adulta. Esse processo atinge um novo patamar quando ela passa a dirigir e protagonizar filmes, nos quais aparece caracterizada em fantasias relativas a seus traumas e é espancada por grupos de homens com cabos de vassoura. Uma parte chave dessa performance, no entanto, está atrelada à veiculação digital da mesma: Raquel disponibiliza esses filmes como vídeos em sites de pornografia na internet, onde os usuários não veem aquelas produções como manifestações artísticas, e sim como pornôs de tortura. Ao invés de refletirem acerca do que estão vendo, estimulam-se com as imagens em tela, e registram esse contentamento e regozijo nos espaços dessas páginas destinados aos comentários. Raquel coleta essas respostas e, em instalações, projeta-as ao lado dos filmes que as instigaram. Em galerias e espaços destinados a manifestações artísticas, faz a sua, não obstante expondo que a maior parte das pessoas, quando privada de contexto, enxerga aquilo como não mais do que uma forma particularmente sádica de se fazer pornografia.

O modo com o qual arte é veiculada na internet como pornografia e acaba sendo, de fato, vista como tal, está longe de ser mera ficção e é bem anterior ao 2020 no qual Laub publica seu livro, e também ao 2018 no qual se passa a história do mesmo. A partir dessa problemática, é possível adentrar possibilidades de reflexão acerca de uma certa faceta da história do cinema brasileiro; uma faceta comumente ocultada de maneira proposital, resumida a rótulos e descrições genéricos e ineficazes e não raro deixada de fora dos livros, mostras, pesquisas e retrospectivas da “história do cinema brasileiro” que se apegam a um senso canônico de linearidade. Tal faceta é nada mais, nada menos do que a dos cinemas brasileiros eróticos e explícitos – termos que designam dois tipos diferentes de cinema, que mesmo unidos por pertencerem a um mesmo período histórico e por compartilharem determinados polos de produção, não são uma coisa só.

(Vale mencionar que, ao se traçar rudimentarmente uma cronologia dos cinemas eróticos e explícitos no Brasil, pode ser apontado que o explícito passa a ganhar mais espaço na medida em que os anos da década de 1980 vão avançando.)

É possível encontrar, sobre o assunto, algumas bases na literatura especializada e também na academia. No entanto, essas leituras possíveis sobre o erótico e o explícito no cinema brasileiro existem num número comparativamente minúsculo quando postas ao lado de, virtualmente, quase todos os períodos históricos, movimentos e correntes de produção da cinematografia do país.

Para desanuviar o debate acerca desses cinemas, nebuloso, em partes, pela falta de preservação (dos filmes e da memória dos mesmos) e por doses cavalares de moralismo, é preciso tomar o caminho indicado por Nelson Rodrigues, que ao discorrer sobre si mesmo, sentenciou: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”. Se debruçar sobre essa faceta do cinema brasileiro, tão condenada pelo senso comum e também pela historiografia oficial, é sentir que se está fazendo uma coisa errada, ou ao menos tida como errada. É ver o amor (e o desamor, e o sexo) de forma fragmentada. Através desse processo, o espectador, em sua cinefilia, acaba sendo o anjo pornográfico de si mesmo.

Tomemos como exemplo “O Pasteleiro” (1981), filmete dirigido por David Cardoso que já foi objeto de uma crítica publicada pelo Plano Aberto. “O Pasteleiro”, conforme discorrido em detalhe na supracitada crítica, é um segmento do longa episódico “Aqui, Tarados!”, dirigido por John Doo, Ody Fraga e David Cardoso. Em matéria de conteúdo sexual incluso ao longo de sua minutagem, encontra-se em algum lugar entre o erótico e o explícito – e sim, por mais que as duas palavras se refiram a coisas diferentes, existe, entre elas, uma zona cinzenta. Ao longo dos três episódios do filme, nudez frontal e traseira podem ser vistas sem dificuldade, inclusive através de sequências que dão destaque às partes íntimas dos atores em tela e de sequências onde há sexo entre os personagens. No entanto, em tais momentos o que predomina é o que aparenta ser um sexo simulado, onde relações sexuais reais entre os atores não estão sendo filmadas (estando, portanto, no que podemos nomear livremente como “erótico intenso”, pois mostra mais do que certas fitas nas quais a nudez ou o sexo simulado não são exibidos de maneira tão evidente). O que existe é meramente uma simulação, como há em qualquer filme hollywoodiano de alto orçamento que se exibe na televisão fechada após o horário nobre. A diferença é que o Brasil, mesmo em suas produções mais enxutas no sentido orçamentário, não tem medo de mostrar os corpos de seus atores e o afeto entre seus personagens.

Dito isso, alguns questionamentos podem ser feitos. O primeiro: “Aqui, Tarados!” e seu segmento “O Pasteleiro” são fitas pornográficas? Se a resposta for “não”, podem ser tomados como alicerces para tal os argumentos apresentados acima, e acrescentar a eles o fato de “O Pasteleiro” é, na verdade, um filme de gênero; o filmete de David Cardoso é um terror gore bastante gráfico e violento onde o elemento sexual funciona mais como parte do fator de choque do que como a questão principal da produção. Mas e se a resposta for “sim”? Bem, aí se sai das conjecturas abstratas e se cai de cabeça na realidade concreta. Assim como em “Solução de Dois Estados” a maior parte das pessoas vê a arte performática de Raquel como mera pornografia, os filmes de David Cardoso, por exemplo, são lidos de igual maneira por uma boa parcela do público no mundo real. E essas produções tem, inclusive, destino similar às dirigidas e estreladas pela protagonista do livro de Michel Laub, mas por motivos não intencionais.

Um filme como “Aqui, Tarados!”, como tantos outros produzidos pelo setor da Boca do Lixo paulistana (também responsável pelo florescer do hoje prestigiado movimento conhecido como Cinema Marginal, capitaneado por figuras como Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias e Carlos Reichenbach) tem título chamativo, direto e nada agradável para os padrões de distribuição cinematográfica contemporâneos, cuja lógica de veiculação de produções que não são lançamentos não mais depende apenas da televisão e das videolocadoras (hoje quase extintas), mas, principalmente, de serviços de streaming e plataformas de video on demand. Se numa videolocadora tradicional uma fita que carregasse o título “Aqui, Tarados!” seria encaminhada diretamente para a sessão reservada da loja, inacessível aos menores de dezoito anos, já nessa época o longa carregaria o estigma de pornográfico. Hoje, no entanto, carrega-o ainda mais, e por um motivo simples: antes, o filme teoricamente ainda estaria disponível em uma locadora. Atualmente, “Aqui, Tarados!” ou qualquer produção de teor e título semelhantes não figuram no catálogo de nenhum serviço de assinatura ou aluguel de filmes digitais – nem mesmo na plataforma de streaming do Canal Brasil, que exibe diversos longas brasileiros eróticos ou explícitos em sua programação nos horários da madrugada, incluindo os filmes de David Cardoso.

Curiosamente, essas para além de seu conteúdo, essas produções parecem ter sido amaldiçoadas por seus próprios títulos, em um movimento inverso ao que acontecia durante o período original de lançamento das mesmas: neste, os títulos apelativos eram veiculados às obras de maneira intencional, muitas vezes por exigência dos produtores, para tornar os filmes mais vendáveis ao circuito exibidor – sobretudo aos chamados “cinemas poeira”, salas menos luxuosas e destinadas majoritariamente a um público trabalhador para quem o componente erótico já nos títulos se tornava um invariável chamariz. Os tempos mudaram. Com o fim quase completo das salas de cinema de rua, é quase impossível imaginar algum cinema multiplex de shopping center exibindo um filme da banda “menos nobre” da Boca do Lixo (e até da banda “mais nobre”, na verdade; difícil conceber “A Herança”, de Candeias, ou mesmo “O Bandido da Luz Vermelha”, de Sganzerla sendo exibidos num cinema de shopping). Nos serviços que oferecem ao espectador a opção de acessar filmes e séries de casa, então, esse tipo de produção parece efusivamente proibida.

Existe um motivo para tal: essas plataformas buscam ser cada vez mais “seguras”, “familiares”, e nesse processo acabam se tornando higienistas, assépticas. Serviços como o Disney+, ainda que pertencentes a empresas gigantescas que são donas de acervos variados, com filmes e séries de múltiplas décadas, terminantemente excluem de seus catálogos qualquer obra que não seja adequada à instituição da “família”. Outros, como o Netflix, possuem configurações que permitem a criação de um “perfil infantil” onde a criança tem acesso apenas ao conteúdo adequado à sua idade. Cada serviço tem o seu modus operandi, mas todos compartilham um dado: não há, em nenhum deles, espaço para um título como “Aqui, Tarados!”. Podemos apenas imaginar a reação dos executivos dessas empresas ao ouvir falar de outras produções da Boca com títulos ainda mais atrevidos, como “Pornô!”, também dirigido pelo trio David Cardoso, Ody Fraga e John Doo e que, como o “Aqui, Tarados!”, está mais no limiar entre o erótico e o explícito do que na pornografia propriamente dita. Tal reação seria fatalmente negativa quanto à entrada desses filmes em seus serviços. Portas fechadas, e fim de papo.

Para ter acesso a esse tipo de conteúdo, portanto, restam ao espectador duas opções. A primeira é, como anteriormente mencionado, assistir ao Canal Brasil tarde da noite, sacrificando horas de sono e não tendo, a partir disso, controle da programação, como de praxe na televisão; caso dependa apenas do Canal Brasil, o espectador não pode, por exemplo, empreender a curto prazo um estudo mais ou menos aprofundado da filmografia de diretores e produtores que, ainda que não reconhecidos pelo cânone moralista e puritano da cinematografia brasileira oficial (e de quase todas as cinematografias oficiais, na verdade), foram extremamente prolíficos e tem, em sua produção, parte da história do nosso cinema, como David Cardoso, John Doo ou Antonio Pollo Galante. Para poder fazê-lo com certa autonomia, o espectador precisa recorrer à internet, onde os filmes desses cineastas e produtores, conforme supracitado, não figuram nos meios oficiais de acesso. Resta se enveredar, portanto, pela pirataria. Na pirataria, essas produções podem ser justamente encontradas no mesmo lugar onde, ficcionalmente, estariam os filmes da Raquel de Michel Laub: nos sites de pornografia.

Não existe, na internet, uma cópia de “Aqui, Tarados!” em boa resolução. A que pode ser encontrada na web, quase que unicamente em páginas dedicadas a vídeos pornográficos, é extremamente degradada em quesito de qualidade. A cor parece ter sido bastante diluída nesse processo, bem como a iluminação de diversas sequências. Nas imagens, sobressaem-se os pixels. Vez ou outra, chega a ser difícil distinguir o que está em tela, a depender do televisor ou monitor do espectador. Parece ser a versão digitalizada de uma cópia em VHS feita a partir de uma transmissão televisiva, ou algo do gênero – esse tipo de preservação não é incomum ao cinema brasileiro, e muitas vezes é o que garante a sobrevivência à posteridade de uma série de títulos, mesmo que não pertencentes ao campo do erótico ou do explícito. No caso destes, no entanto, a situação de “Aqui, Tarados!” infelizmente é bastante comum. Os que existem pela rede em boa qualidade são os que tiveram três tipos de sorte: a de terem sido restaurados, telecinados e digitalizados (comumente pelo Canal Brasil, que tem em sua grade um espaço destinado a esse tipo de produção), a de terem sido exibidos na televisão e a de terem sido, nessas exibições, gravados por usuários que posteriormente veicularam o material na internet.

Assim sendo, o espectador interessado na “faceta oculta” do cinema brasileiro poderá ver uma parte substancial dela apenas através do proverbial buraco da fechadura rodrigueano: obscurecida, empobrecida, críptica, de maneira inadequada.

Para além de serem párias dos serviços de streaming e video on demand, esses filmes também vivem fora da grei em meio às redes destinadas exclusivamente à cinefilia. É o caso, por exemplo, do Letterboxd, que funciona como rede social para a adição de filmes, notas, textos e listas, onde os usuários podem, também, adicionar amigos em seus perfis. Tendo como base para seus dados uma outra plataforma, a do TheMovieDatabase (TMDb), o Letterboxd constantemente bane produções brasileiras eróticas ou explícitas cadastradas no TMDb. Títulos como “Oh! Rebuceteio” (1984), de Cláudio Cunha, “Um Pistoleiro Chamado Papaco” (1986), de Mário Vaz Filho e “Fuk Fuk à Brasileira”  (1986), de Jean Garrett, são presenças inconstantes em meio aos filmes disponíveis para que os usuários avaliem e discorram sobre em suas resenhas. Uma hora estão lá, na outra foram deletados do site por terem sido marcados como pornografia por alguém na base de dados.

Nisso, o debate acerca das produções eróticas e explícitas acaba caindo em uma espécie de binarismo. “Isso pode”, “isso não pode”; “isso é cinema”, “isso é pornografia”; “isso é digno de estar nos serviços de streaming ou sites designados à discussões sobre cinema”, “isso não é”. Esses cinemas, que são plurais, passam a ser homogeneizados enquanto uma única e abominável “pornografia”. São chamados (desde a época em que eram produzidos e comercializados, aliás), sem distinção, de “pornochanchada”. Fala-se, inclusive, da dita “pornochanchada” como se ela fosse um movimento cinematográfico, como o Cinema Novo, ou um momento da produção cinematográfica brasileira, como o cinema da Embrafilme. Essas generalizações são falhas, primárias. Certos filmes onde há algum elemento erótico sequer estão perto de um cinema erótico como o de “Aqui, Tarados!”, por exemplo.

“A Dama da Lotação” (1978), de Neville D’Almeida, é um filme co-produzido pela Embrafilme, empresa estatal. Adaptação da obra de Nelson Rodrigues, é protagonizado por uma mulher que trai seu marido com diversos homens. Em dados momentos, há a seminudez ou a nudez da personagem e de seus parceiros, bem como sequências nas quais, com corpos colados uns aos outros, é simulado o sexo. Ainda assim, no que se refere ao teor sexual, é um filme consideravelmente leve. Apesar disso, um cineasta como D’Almeida é jogado no mesmo balaio que David Cardoso, Cláudio Cunha, José Mojica Marins, Victor Lima e tantos nomes diversos e diferentes entre si, sob o mesmo guarda-chuva da “pornochanchada”.

É preciso urgentemente que haja uma revisão histórica acerca dos cinemas eróticos e explícitos no Brasil. Fazer as devidas contextualizações, analisar as obras, distinguir os estilos de produção, o teor sexual de cada uma, o perfil dos cineastas e dos produtores é fundamental. Apenas com uma pesquisa substancial e séria acerca disso, amparada por uma divulgação da mesma na literatura relativa ao cinema brasileiro, esses conceitos e preconceitos começarão a mudar entre os espectadores mais aficionados. Para chegar no público geral, a saída é mais difícil: superar o estigma da pornografia que faz com que essas produções sejam escondidas nos horários tardios da televisão ou nas páginas de pornografia da internet. E isso porque a questão do erótico e do explícito é apenas uma das muitas generalizações nas quais o cinema brasileiro está envolvido ante os olhos do senso comum.

O processo para a discussão e o entendimento acerca desses cinemas é longo e está longe de ser simples. No entanto, se entre os aficionados pelo cinema brasileiro, sejam eles cinéfilos, críticos, acadêmicos ou realizadores, não houver a disposição de contribuir para a dissolução dessas visões errôneas, a maior probabilidade é a de que pouco mude nesse panorama e parte da história do cinema brasileiro acabe presa a um destino infeliz: o de existir como um espectro, em qualidade empobrecida, relegada a sites pornográficos cujo objetivo real não é o de abrigar uma obra como “O Pasteleiro”, filme que está muito longe de ser uma fita pornô. Caso essa mudança não comece a eventualmente acontecer em maior escala, para fora das restritas rodas de debate cinéfilas, o que se pode constatar, com certo dissabor, é que assim como os filmes de Raquel em “Solução de Dois Estados”, a produção de David Cardoso e tantos outros filmes dessa faceta oculta de nossa cinematografia estarão destinados a serem perpetuamente vistos como pornografia, por usuários oblíquos às implicações artísticas de tais obras quando veiculadas em determinados domínios da internet.

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