Plano Aberto

A educação humanista no cinema de Norman McLaren

Se existe uma forma simples de descrever as obras de Norman McLaren para a Secretaria Nacional de Cinema do Canadá (NFB, em inglês), seria “toda vida há de ser preservada”. Essas obras, muitas vezes criadas a partir de colaborações com outros diretores do NFB como Evelyn Lambart, Grant Munro e Claude Jutra, foram a forma que o cineasta encontrou de protestar contra a homofobia, o racismo, a violência e a desigualdade social por meio de seus curta-metragens experimentais, altamente metafóricos e recheados de técnicas de animação, mixagem e narrativa.

McLaren ironicamente confirmou suas crenças comunistas após visitar a União Soviética bancado por seu pai, que esperava que o filho se “curasse” após ver o país de perto. Posteriormente se tornou um pacifista assíduo após presenciar os horrores que desencadeariam a Guerra Civil Espanhola e se apaixonou pelo seu parceiro de longa-data – e futuro colega de trabalho –, o produtor e administrador Guy Glover. Marcado pela atenção indesejada que sua homossexulidade e posicionamento político recebiam na época (e em leve menor grau, atualmente), dedicou a vida inteira a propagar o companheirismo, o amor, a paz e a justiça.

Para o espectador de McLaren, algumas coisas se tornam claras: um apreço muito liberal com a ideia de exatidão, uma exploração de cores, sons e simetrias e uma sempre simples mensagem sobre conciliação entre os conflitos sociais, tão educativo quanto um Telecurso 2000. Lines: Horizontal e Lines: Vertical são apenas linhas horizontais e verticais tal qual os títulos informam se movendo sob a tela azul/vermelha. O documentário Pen Point Percussion mostra o processo técnico por trás de Loops, um curta que demonstra repetições de padrões visuais e sonoros em uma paleta de cores. Mosaic/Mosaïque é caleidoscópico, usando técnicas do pontilhismo e da geometria para construir uma extravagância colorida enquanto Begone Dull Care abdica dessa estrutura e tem uma abordagem mais livre. Rythmetich é uma um jogo de amarelinha onde os algarismos arábicos tem dificuldade em seguir as regras de adição e subtração. Desses trabalhos apenas Pen Point Percussion apresenta personagens humanos – no caso, o próprio Norman. No entanto, as cores, os movimentos, os sons, as formas, os detalhes saltam com vida. Para McLaren, a arte é um pedaço de vida posta no inanimado, no objeto. É preciso dar liberdade à arte como devemos dá-la a pessoas.

Por fim, chegamos às obras-primas de sua filmografia: Neighbours, A Chairy Tale e Pas de Deux. Diferente de outros trabalhos citados, todas estas estrelam atores e possuem uma narrativa fantasiosa e leve, que confirmam a estética e temática presentes em toda a sua filmografia. O primeiro é a história de dois vizinhos se matando por uma flor que nasce no jardim que dividem, o segundo mostra um homem brigando para domar uma cadeira que se recusa a ser deixá-lo sentar, o terceiro retrata uma bailarina dançando com reflexões de si própria e depois sendo acompanhada por um bailarino para realizar o dueto titular. Essas histórias relativamente simples indicam a vontade didática de McLaren, o desejo de expressar sua ideologia através de métodos específicos do cinema ao invés de narrativas com lição de moral. Também são parte de uma certa “trilogia” não-oficial, portanto cabe a análise individual e depois comparativa entre seus componentes.

Neighbours, apesar de ser o primeiro a ser produzido, é o mais brutal e consequentemente realista dos três. Colorido e filmado em “pixilation”, uma técnica que usa a premissa plano-a-plano do stop motion porém com atores. O curta abre com dois vizinhos sentados em seus quintais adjacentes, perto de suas casas similares, cada um com o próprio cachimbo, cadeira e jornal. Eles se comportam amigavelmente até que nasce um girassol artesanal no quintal que dividem, inicialmente fascinados com a aparição da flor, eles rapidamente começa a disputar a posse dela. Sem réguas, cada um acredita que a flor está presente em seu lado do quintal, e então eles constroem e destroem as cercas do agora adversário antes de partirem para a violência física. Eventualmente eles destroem as cercas, suas casas, matam a mulher e o bebê do outro e finalmente sucumbem às próprias feridas. Após a tragédia, a natureza ao redor se transforma. As estacas quebradas formam uma cerca ao redor de dois túmulos marcados com a cruz cristã, ao pé de cada túmulo um girassol.

Através da integração dos objetos em cena, é possível distinguir um incisivo comentário sobre a cultura colonial do homem branco suburbano, o desejo de possuir inteiramente aquilo que pode ser dividido (tanto os espaços quanto os produtos) e a facilidade com que a violência respinga nos inocentes que ele clama defender (a família tradicional, um desejo impensável mas respeitado por McLaren). Conforme a trama avança, a coreografia dos vizinhos se torna mais e mais mecânica, menos humanizada conforme a violência cresce. Na contrapartida disso a maquiagem dos ferimentos torna os rostos mais parecidos com primatas do que com humanos. A humanidade está usando a mecânica, o avanço tecnológico para propósitos selvagens, regressando a um estado pré-Homo sapiens. Nos créditos finais, em quatorze línguas aparece escrito “Ame o próximo”.

A Chairy Tale vai na contramão pessimista do antecessor e toma uma abordagem cômica. Pegando emprestado os trejeitos físicos de lendas do cinema mudo como Buster Keaton e Charlie Chaplin, o leitor tenta se sentar em uma simples cadeira de madeira para ler seu livro. Remanescente de um desenho à la Tom e Jerry, começa um jogo de gato e rato onde o homem se frustra progressivamente ao falhar em domar ou enganar o objeto supostamente inanimado. Por fim, ele finalmente desiste de sua arrogância e reconhece a cadeira como sendo um igual e permite que ela se sente nele primeiro. Dada a cortesia, finalmente nossa heroína se permite dividir o espaço com o leitor, enquanto o texto informa que “Eles sentaram felizes para sempre.” Quando despidos da nossa superioridade, se encontra o caminho para a conciliação, se vemos em Neighbours como os homens podem se destruir, aqui isso se torna inviável porque o homem não pode destruir o ambiente. Ainda que o nosso modelo de produção ultra capitalista sufoque a última planta do planeta, essa bola rochosa vai continuar rodando o universo até muito depois do fim da humanidade. McLaren através da arte, confere vida ao que não existe, e dignifica essa vida como mais avançada do que a espécie dominante da terra. A natureza e a arte demandam o respeito da sociedade, o famoso “saber por onde chegar e por onde sair”, mas quando o conflito cessa a harmonia pode se tornar algo além de uma possibilidade, a norma.

Finalmente chegamos em Pas de Deux, o mais narrativamente abstrato de todos. A bailarina Margaret Marcier dança num completo vazio, despido de cor e espaço, mas através dos seus passos seu corpo iluminado começa a ecoar dentro do plano. Não mais sozinha e apagada, ela brilha por todos os cantos da tela até ser acompanhada pelo bailarino Vincent Warren, então os dois performam o tal pas de deux (passo de dois), inicialmente sozinhos mas gradualmente acompanhados de seus reflexos cada vez mais reluzentes e finalizam em um dos planos mais lindos do cinema: os dois marginalmente iluminados se olhando após finalizarem a rotina enquanto desvanecem na escuridão. Além da leve subversão ao mito de Adão e Eva com a mulher dando origem ao homem, é a conclusão para o início de Neighbours e o intermédio de A Chairy Tale. A batalha pela possessão dá vez à paz entre o homem e o espaço e finalmente termina com a harmonia entre dois indivíduos (e por aí se segue) e o espaço que habitam. Através da dança, da liberdade criativa, os gestos corporais expressam mais do que palavras e produzem a utopia como possível. É importante esclarecer que o pas de deux não é um passo específico, mas qualquer colaboração entre dois dançarinos no balé. Para McLaren, até categorizações, que são limitadoras em essência, devem permitir a maior liberdade possível. Facilitar o entendimento entre as duas ou mais partes é o elemento mais essencial de sua filmografia, desde números pulsantes até objetos e pessoas.

Ao imbuir tanta vivacidade em sua mise-en-scéne, ele advoga pelo respeito à vida, às diferenças, aos espaços e a arte em si. O cinema de Norman McLaren é dos mais sensíveis do meio experimental pós-guerra, menos interessado em usar suas proeminências técnicas para explorar uma variedade de narrativas e não-narrativas do que estava em moldar tais técnicas de forma singela, simbólica e didática na sua missão de alertar o mundo para o caos social que estava se formando. Como seria da vontade de McLaren, finalizo com uma adaptando da ilustre frase de Lenin para o cinema do diretor. “Há horas em que nada acontece e há segundos em que horas acontecem.” McLaren podia transcorrer horas de mensagens em seus curtas, e milagrosamente o fez.

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