“A Lista de Schindler”, as imagens do holocausto e os limites do formalismo

“A Lista de Schindler”, as imagens do holocausto e os limites do formalismo

Steven Spielberg na encruzilhada do primor técnico

Wallace Andrioli - 17 de dezembro de 2020

É curioso que Steven Spielberg afirme ter se livrado de todas as ferramentas do seu cinema pregresso para fazer A Lista de Schindler.¹ Só mesmo numa dimensão publicitária essa fala faz sentido, já que é visível no filme a mobilização ostensiva de recursos técnicos sobre os quais o diretor tem imenso domínio. O uso da montagem paralela para contrapor, num primeiro momento, a vida de conforto de Oskar Schindler (Liam Neeson) às privações do gueto de Cracóvia e, posteriormente, o protagonista ao antagonista Amon Göth (Ralph Fiennes); a criação de pequenos “clipes” que explicam, por meio de elipses muito eficientes, o modus operandi de Schindler em meio aos nazistas; a própria opção pelo preto e branco e pela câmera na mão em sequências específicas, esforço consciente de emular uma relação mais direta e brutal com o mundo; a expressividade da mise-en-scène, meticulosamente pensada para comunicar determinadas ideias.²

Eficiência, eficácia, técnica. Termos que definem a relação de Spielberg com a linguagem cinematográfica, meio pelo qual ele consegue a proeza de fazer da história de um genocídio um filme prazeroso de se ver. Por mais trágicos que sejam os acontecimentos narrados em A Lista de Schindler e por mais peso que o diretor consiga imprimir às cenas de maior violência, tudo é sempre mediado de forma muito aberta por esse domínio técnico absurdo, pela condução estrita das emoções do espectador em seu contato com as imagens do filme. Vem daí a proeza de uma narrativa de mais de três horas fluir com grande facilidade. Há dor, tragédia e brutalidade em A Lista de Schindler, suficientes para dar ao filme um sentido informativo e sintético do holocausto. Mas não há exaustão do espectador nem qualquer brecha para a espontaneidade.

Eficiência, eficácia e técnica são noções muito diretamente associadas ao próprio mecanismo de extermínio criado pelos nazistas. Nesse sentido, Spielberg trafega por terrenos perigosos. Sujeitar histórias como essa a códigos muito marcados do cinema dramático hollywoodiano (esse é um caso claro de “drama histórico comercial”, conforme definido pelo historiador Robert Rosenstone³) é correr o risco de diluir sua força reflexiva na necessidade de construir narrativas perfeitamente articuladas, em que nada pode sobrar.

Esse problema se manifesta de forma mais explícita em A Lista de Schindler na infame sequência de Auschwitz. No início da década de 1960, Jacques Rivette escreveu o seminal texto Da abjeção para contestar a opção do diretor italiano Gillo Pontecorvo, no filme Kapò (1960), por fazer um travelling no momento da morte da prisioneira de um campo de concentração. O que dizer de Spielberg entrando com sua câmera na câmara de gás e, mais grave, brincando com as expectativas (de personagens e espectadores) do que aconteceria lá dentro? Por que o diretor optou por reconstruir Auschwitz e encenar o passo a passo da execução de seus prisioneiros? Porque A Lista de Schindler quer ser um filme-síntese do holocausto, uma experiência emocional mas também informativa e didática. Logo, Auschwitz não poderia faltar. E por que Spielberg mente sobre o que acontecia no interior de uma câmara de gás? Para exercitar seu domínio sobre as emoções do espectador, elevando a tensão do filme a um grau máximo e distendendo-a através de um plot twist impossível.

Os contrapontos mais óbvios às escolhas de Spielberg são Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais, e Shoah (1985), de Claude Lanzmann, mas vale pensar num caso recente, até mais próximo de A Lista de Schindler por também ser uma narrativa ficcional: O Filho de Saul (2015), de Laszlo Nemes. Como Spielberg, Nemes aposta num estilo visual marcante, na expressividade da linguagem cinematográfica potencializada para produzir determinadas reações no espectador. Mas seu filme é bem menos preso a um fio narrativo previamente estabelecido, logo, gera a sensação de abertura ao imprevisível que não existe em A Lista de Schindler. Além disso, o diretor húngaro evita a pretensão de sintetizar o holocausto: O Filho de Saul é essencialmente fragmento, algo manifesto na opção pela câmera sempre próxima do protagonista, um sonderkommando; o espectador só vê o que está no campo de visão de Saul (Géza Röhrig). Nemes acaba criando uma experiência muito mais sensorial que racional, provavelmente o mais perto que o cinema ficcional já chegou da urgência e do desespero concretizados nas quatro fotografias feitas por um sonderkommando de Auschwitz-Birkenau em 1944, único registro visual do extermínio perpetrado pelos nazistas.⁴

Um dos méritos de A Lista de Schindler é seu protagonista complexo, que embaralha leituras maniqueístas do passado: Oskar Schindler era um capitalista aproveitador, fez uso de trabalho escravo, se aproximou do nazismo (ele foi filiado ao NSDAP, o partido nacional-socialista alemão) e lucrou com a guerra. Mas também salvou mais de mil vidas. Figura multifacetada, a princípio cara a uma historiografia recente dos regimes autoritários que busca olhar para comportamentos ambíguos, não imediatamente classificáveis nos polos da colaboração e da resistência. O desenvolvimento desse personagem pelo roteiro de Steven Zaillian e pela direção de Spielberg é muito bem realizado… Até a parte final do filme, quando Schindler se torna uma espécie de herói inconteste, que vai pessoalmente a Auschwitz libertar as “suas judias” e passa a boicotar o esforço de guerra alemão, ao comandar uma fábrica de armamentos propositalmente improdutiva.

Como construção fílmica, portanto, A Lista de Schindler é quase irretocável. Contém alguns deslizes habituais no cinema histórico de Spielberg (a elevação excessiva do tom emocional, o pendor ao maniqueísmo mesmo quando o diretor tem em mãos todas as peças para evitá-lo, a inclusão de cenas explicativas demais), mas nada que chegue ao extremo de um Amistad (1997), por exemplo. Os filmes, no entanto, existem no mundo. Eles estabelecem diálogos, mesmo que a revelia da vontade de seus realizadores, com outras produções culturais e reflexões intelectuais sobre os temas que abordam. Às vezes, dependendo desses temas, o olhar puramente formalista não é suficiente. Quando se analisa A Lista de Schindler para além do reconhecimento de um uso primoroso da técnica cinematográfica, seus muitos problemas vêm logo à tona.



1 No documentário biográfico Spielberg (2017), de Susan Lacy, o diretor afirma o seguinte: “Aquele filme é diferente de tudo que eu fiz antes. Tentei fazer o filme sem truques, sem lentes sofisticadas, sem aquelas gruas de Hollywood. Tentei pegar todas as ferramentas, com as quais fiz tantos filmes, e jogá-las pela janela.”

2 Sobre os recursos de linguagem usados ostensivamente em A Lista de Schindler, vale a leitura do texto Muito além da menina de vermelho, de Fábio Rockenbach, disponível em: https://revistamoviement.net/muito-al%C3%A9m-da-menina-de-vermelho-8108ec5044b0?source=collection_home—3——1———————–.

3 No livro A história nos filmes, os filmes na história (2010), Rosenstone define o “drama histórico comercial” da seguinte forma: “Concentrando-se em pessoas documentadas ou criando personagens ficcionais que são colocados no meio de um importante acontecimento ou movimento (a maioria dos filmes contém tanto personagens reais quanto inventados), o pensamento histórico envolvido nos dramas comerciais é, em grande parte, o mesmo: indivíduos (um, dois ou um pequeno grupo) estão no centro do processo histórico. Através de seus olhos e vidas, aventuras e amores, vemos greves, invasões, revoluções, ditaduras, conflitos étnicos, experiências científicas, batalhas jurídicas, movimentos políticos, genocídios. Mas fazemos mais do que apenas ver: também sentimos. Usando imagem, música e efeitos sonoros além de diálogos falados (e berrados, sussurrados, cantarolados e cochichados), o filme dramático mira diretamente nas emoções. Ele não apenas fornece uma imagem do passado, mas quer que você acredite piamente naquela imagem – mais especificamente, nos personagens envolvidos nas situações históricas representadas.”

4 As quatro fotografias e várias das questões que as cercam foram analisadas pelo filósofo francês Georges Didi-Huberman no livro Imagens apesar de tudo (2004).

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