Plano Aberto

A Maldição da Residência Hill

É bem interessante a resposta de Mike Flanagan ao desafio de transformar em série o livro de uma escritora clássica de horror, já adaptado para o cinema – no adorado “Desafio do Além” (1963), de Robert Wise, e no execrado “A Casa Amaldiçoada” (1999), de Jan de Bont. Ao invés de simplesmente repetir essa história contada outras duas vezes, “A Maldição da Residência Hill” parte do elemento mais básico que compõe o mote de Shirley Jackson (uma casa amaldiçoada que tem “vida própria”) para buscar novas possibilidades narrativas, rearranjando personagens e situações.

Flanagan estrutura a narrativa da série sobre duas temporalidades distintas (1992 e 2018), que se tocam a partir de um recurso presente num de seus melhores filmes, “O Espelho”: por meio de raccords de movimento que ligam, na montagem, planos ambientados no passado e no presente, o diretor trafega, com fluidez, por esses diferentes momentos dos personagens. Numa cena do primeiro episódio, por exemplo, ao receber um telefonema preocupante da filha Nell (Victoria Pedretti), Hugh Crain (Timothy Hutton) sai apressado pela porta de seu quarto. Flanagan corta para o passado, quando, na última noite da família Crain na mansão Hill, o mesmo personagem (nessa fase, interpretado por Henry Thomas) entra abruptamente pela porta do quarto de um de seus filhos, para resgatá-lo de um perigo iminente. Esse tipo de rima temática é repetido à exaustão em “A Maldição da Residência Hill”, reforçando a continuidade entre passado e presente, o retorno do primeiro no segundo.

Dedicando cada um dos cinco episódios iniciais a um filho do casal Hugh e Olivia Crain (Carla Gugino), a série também faz uso do “efeito Rashomon”, reconstruindo, ao longo da narrativa, interpretações sobre as ações desses personagens. O suicídio de Nell e sua relação desde a infância com um assustador fantasma são reconfigurados no quinto capítulo (“The Bent-neck Lady”), dedicado à jovem; o roubo de Luke (Oliver Jackson-Cohen) na casa de Steven (Michiel Huisman), apresentado inicialmente no epílogo do primeiro episódio (“Steven sees a ghost”), é visto sob outra perspectiva no quarto (“The twin thing”). Flanagan vai, assim, montando aos poucos um mosaico de figuras humanas bastante complexas, cujas características frontais, que as definem diante do mundo exterior (o escritor bem-sucedido e egoísta, a empresária sisuda, a psicóloga misantropa, o viciado inconsequente e a moça frágil e perturbada), são matizadas conforme revelam novos aspectos de suas personalidades.

Chega então o impressionante sexto capítulo (“Two storms”), culminância emocional e estética do que Flanangan construiu até esse ponto. Nele, o diretor abre mão quase totalmente da montagem para, durante o velório de Nell, momento de reencontro, após alguns anos, dos outros quatro irmãos com seu pai, borrar de vez as fronteiras entre passado e presente por meio do uso do plano-sequência. A funerária de Shirley Crain (Elizabeth Reaser) e a mansão Hill, 2018 e 1992, se confundem, se encontram, conforme a câmera passeia por salas, quartos, corredores. Através desse recurso, Flanagan conta a trágica história de um fantasma perdido no tempo e no espaço, fadado a ser ignorado por aqueles que ama. É o auge da força dramática de “A Maldição da Residência Hill”.

Mas a série tem outros momentos dramaticamente poderosos, não só envolvendo os personagens centrais, com seus traumas e laços emocionais fragilmente estabelecidos, mas também figuras periféricas, a princípio desimportantes. Dois exemplos: no sétimo episódio (“Eulogy”), Sr. Dudley (Robert Longstreet), caseiro da mansão Hill, relata com profunda dor parte de sua história a Hugh; já no primeiro, uma viúva recente é entrevistada por Steven para seu próximo livro, contando o contato que teve com o fantasma do marido. Essas duas cenas introduzem um curioso aspecto documental em “A Maldição da Residência Hill”, já que, filmadas quase sem cortes, como longos monólogos dos atores para a câmera, se assemelham bastante a depoimentos num filme não-ficcional sobre pessoas que perderam seus entes amados. O horror aqui é marcado por fortes tons humanísticos.

É uma pena que essa força se dilua em alguma medida no último capítulo (“Silence lay steadily”). Flanagan recorre a um melodrama conciliador (entre vivos e mortos) e a uma espécie de lição de moral (com direito a narração em off à lá “Grey’s Anatomy”) para amarrar todas as pontas soltas e encerrar a jornada de seus personagens. É verdade, no entanto, que apesar do tom talvez inadequado – que também lembra o da conclusão de “Jogo Perigoso” (2017), último filme do diretor –, as escolhas feitas pelos Crain nesse episódio final são coerentes com sua trajetória pregressa. Flanagan encerra “A Maldição da Residência Hill” como uma série coesa, bastante eficiente na empreitada de contar uma história dolorosa, trágica até, e que, apesar de baseada num clássico da literatura de horror norte-americana, extrapola muito sua fonte.

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