“De vez em quando
Todos os olhos se voltam pra mim
De lá do fundo, da escuridão
Esperando e querendo
Que eu saiba”
Assim escreve o músico baiano Tom Zé, na canção que dá o título a seu disco “Todos os Olhos”, de 1973. É nesse tipo de situação em que parece estar sua colega de profissão curitibana Karol Conká no documentário “A Vida Depois do Tombo”, que chegou ao Globoplay ao final de abril de 2021. Na produção, Conká se empenha em seguir o conselho de um outro baiano; não Tom Zé, mas Raul Seixas, que entoa energeticamente no disco “Aeon”, de 1975: “Tente outra vez”.
Com direção geral assinada por Patrícia Carvalho e Patricia Cupello, a minissérie de quatro episódios, com cada um deles tendo em torno dos trinta minutos de duração, é mais enxuta do que outros esforços documentais recentes da Globoplay, como “Doutor Castor” (2021) e “Em Nome de Deus” (2020), que contavam com uma minutagem mais longa e maior atulhamento de informações. Aqui, a opção é por certa simplicidade (mesmo que com certos salamaleques estéticos, como discutiremos mais adiante), até porque tudo indica que “A Vida Depois do Tombo” foi produzida rapidamente, em um curto espaço de tempo. Afinal, a Rede Globo sequer esperou o término da edição do reality show “Big Brother Brasil” na qual Conká participou para lançar o documentário.
Parte já tradicional da grade de programação da Globo nos primeiros meses do ano, o BBB atingiu uma popularidade nunca antes vista em 2020, quando, em decorrência da pandemia de COVID-19, um número crescente de pessoas começou a acompanhar o confinamento dos participantes no que sempre foi chamado de “a casa mais vigiada do Brasil”. Na esteira desse sucesso, a edição de 2021 do reality foi planejada para dar ainda mais certo, com patrocínios de peso e uma duração inédita de cem dias consecutivos, a mais longa da história do programa. Logo nas primeiras semanas, no entanto, muitos espectadores já haviam começado a demonstrar um esgotamento, um descontentamento. Um dos motivos para tal foi o desenrolar das atitudes da rapper, que havia entrado na casa como uma das favoritas para vencer o jogo.
Desagradando os que acompanhavam o BBB pela maneira como interagia com os demais integrantes do reality, em especial o ator Lucas Penteado – chegando a exigir que este se retirasse do ambiente onde são feitas as refeições, promovendo um isolamento do participante que teve como resultado a desistência do mesmo – Conká foi eliminada pelo público com uma rejeição recorde na história do Big Brother Brasil. A premissa inicial de “A Vida Depois do Tombo” (que não necessariamente permanece perene durante os quatro episódios) é justamente a de acompanhar a cantora no pós-BBB, lidando com a maneira como as pessoas a percebem, os rumos de sua carreira, as possíveis reconciliações com seus desafetos no programa e a forma como sua família foi afetada durante o período em que ela esteve no confinamento.
2021 foi o segundo ano em que o Big Brother Brasil trabalhou com a dinâmica “pipoca/camarote”. Para além dos participantes anônimos que entravam no programa através de inscrições, como sempre fizeram desde o primeiro BBB, agora haviam as celebridades convidadas para participar do jogo. Se em 2020 a cantora Manu Gavassi e o ator Babu Santana colheram os frutos de suas participações no pós-jogo, em 2021 o que ocorreu parece ter sido o oposto, fazendo com que a Rede Globo precisasse operar ao vivo uma gestão de crise que claramente visava reduzir os danos para a carreira dos participantes-celebridade.
O cantor goiano Rodolffo, pivô de uma discussão sobre preconceito racial, foi presenteado ao vivo no programa “Encontro com Fátima Bernardes” (também da Globo) com livros como “Pequeno Manual Antirracista” (Djalmila Ribeiro) e “Quarto de Despejo” (Carolina Maria de Jesus) para sinalizar sua intenção de se reeducar. Ainda assim, uma música da dupla sertaneja da qual faz parte tornou-se sucesso nas plataformas digitais durante sua participação no BBB, e mesmo após sua saída, os números permanecem altos. A situação de Conká parece ter sido ainda mais complicada para o compliance da Globo, que além de orientar a rapper ainda dentro do jogo, a submeteu a uma bateria de participações em programas de televisão da emissora, dentro e fora do expediente padrão que é direcionado aos eliminados do reality (que inclui passagens pelo “Mais Você” e pelo “Domingão do Faustão”). A minissérie da Globoplay vem no que parece ser a cartada final desse esforço de suavização de imagem.
Ao longo dos episódios, predominam quatro tipos de imagem. O primeiro está nas de arquivo, que compreende fotografias de infância, entrevistas e apresentações de TV que Karol deu ao longo de sua carreira, filmagens de apresentações em festivais, videoclipes musicais e, claro, clipes de sua participação no BBB 21. O segundo, em gravações que acompanham de perto o cotidiano da rapper no pós-BBB. O terceiro, em entrevistas realizadas com familiares, amigos, conhecidos e parceiros musicais. E por fim, um quarto tipo, que talvez seja um dos mais importantes: sequências rodadas em estúdio. Nelas, Conká está cercada de telas, que a bombardeiam com imagens e frases com as quais ela reage e interage, falando em voz alta, para o espectador. Esteticamente, tais sequências de estúdio mais se aproximam de “Fifteen Million Merits”, episódio da série de ficção científica “Black Mirror” (2011) protagonizado por Daniel Kaluuya, do que do que se espera de um documentário.
Nelas, Conká é confrontada com seus feitos durante o BBB. É perguntada se voltaria atrás para corrigir suas ações se pudesse, se arrepende-se do que fez. Ela chora lágrimas que são capturadas avidamente, com interesse, pela câmera. Ex-participantes do reality com quem teve desavenças foram convidados a encontrá-la nesse espaço, e quase todos recusaram qualquer tipo de participação, com duas exceções.
A primeira é Lumena Aleluia, psicóloga e DJ que foi a principal aliada da cantora no jogo. As duas protagonizam um momento afetivo, de abraços, trocas, lágrimas. A segunda, em contrapartida, é a figura mais antagonizada pela cantora no programa, Lucas Penteado, que se não se dispôs a encará-la cara a cara, enviou à produção um vídeo que ocupa solidamente uma das grandes telas do ambiente, ante uma apequenada Karol que olha e responde, exprimindo remorso, culpa, pedindo desculpas. Aqui os jogos de cena propostos por “A Vida Depois do Tombo” começam a ficar mais claros, bem como suas intenções em relação à reconstrução de imagem de Karol Conká, que querendo ou não já foi exaustivamente exposta a público para pedir perdão pelo que fez em rede nacional. A minissérie, aliás, trata o ator de uma forma estranhíssima, tentando encontrar em seus comportamentos no reality uma justificativa para a maneira como ele foi tratado por Conká e traçando um paralelo entre ele e o falecido pai da cantora, como a sugerir que o conflito entre os dois teria sido motivado por um processo de regressão psicanalítico (“ele me lembra meu pai”). Sabendo das conversas vazadas da produção do BBB, na qual um dos diretores do programa falava sobre Lucas de maneira a desmerecê-lo, o expediente que a Globo tenta passar adiante aqui é de fazer arquear sobrancelhas, para dizer o mínimo.
Além dos quatro tipos de imagem previamente elencados, existem outras intervenções visuais ao longo do documentário. Dentre elas, vale destacar as sobreposições, em tela, de imagens retiradas da internet por meio de animações e recortes visuais. Matérias de portais, relatando a situação da documentada ou a submetendo a notícias falsas, e publicações nas redes sociais estão entre os principais itens a receberem tal tratamento. No que é relativo a estas, vale um parêntese. A produção da minissérie foi desenvolta o suficiente para ir atrás de postagens no Twitter que se referiam a Conká através do que se tornou um dos apelidos mais recorrentes para esta entre o público do Big Brother: “Jaque Patomba”, jogo de palavras cunhado tendo como base o refrão de uma das músicas mais conhecidas da cantora – o mesmo que, em verdade, nomeia a minissérie – o famoso “Já que é pra tombar, tombei”.
Musicalmente falando, aliás, “A Vida Depois do Tombo” passa por um desafio grande ao não poder se utilizar de diversas das canções de maior expressão de Karol Conká, devido a brigas com produtores musicais – tudo isso explicado em cena, com as faixas proibidas e o nome dos indivíduos, inclusive, sendo explicitamente colocados (como em tweets de um casal de produtores alfinetando a rapper enquanto ela ainda estava no reality). Desavenças dessa natureza, entremeadas também por brigas judiciais, nem mesmo o orçamento de uma produção da Rede Globo consegue resolver.
Já que o assunto é música, cabe também frisar que o documentário termina com Conká gravando um novo single baseado em sua vivência nos últimos meses, de maneira bem promocional. Um espectador mais pragmático pode acabar vendo “A Vida Depois do Tombo” como uma grande propaganda não apenas para essa música, como para um reerguimento da carreira da cantora. Outros podem se sentir mais tocados por trechos que acompanham a rapper fazendo uma viagem interestadual para casa de carro, por um expresso receio de receber agressões em aeroportos, demonstrando ansiedade e medo ao comprar um chiclete numa loja de conveniência de posto de gasolina, ou rememorando sua vida, de uma infância marcada pelo racismo passando por uma carreira conturbada e resultando no sucesso. Com uma minutagem enxuta, a minissérie acaba de maneira quase abrupta e deixa ao público a batata quente, para que ele pense o que quiser.
O futuro de Karol Conká, como o de todos, ainda parece incerto. Com o apoio que vem recebendo dos grupos de mídia, tudo leva a crer que restaurará sua carreira gradualmente. Agora, o “A Vida Depois do Tombo”, ainda que munido em tese por boas e legítimas intenções, parece, como um todo, não mais do que uma peça publicitária elaborada para essa campanha de limpeza de imagem da cantora. Se todos os participantes do BBB21 que passaram por maus bocados durante o programa fossem objeto de tamanho interesse para a Globoplay, o catálogo da plataforma de streaming já estaria ainda mais recheado.