Plano Aberto

Akira (1988)

Adaptar um livro ou quadrinho para o cinema traz óbvias e necessárias mudanças. O mangá de Akira, por exemplo, trabalha com muito mais calma e complexidade várias figuras que, no filme de 1988, só aparecem em uma janela de poucos segundos. O que pouco se discute é o efeito extremamente positivo que isso gera no longa-metragem de Katsuhiro Otomo. Porque, afinal, o que vemos ao longo de duas horas é uma overdose de informações. Uma enxurrada de acontecimentos, tensões e ideias que se atropelam e se consomem. Mas, diferente do que poderíamos pensar, é justamente isso que torna Akira um filme tão grandioso.

Akira começa com uma bomba, passa por um noticiário sobre conflitos de classe, nos apresenta a gangues de motoqueiros e logo nos joga de supetão em uma trama conspiratória e política. Tudo isso ilustrado pela já notória animação absurdamente detalhista que, mesmo 30 anos depois, ainda nos impressiona. Mas então, Akira nos magnetiza por sua forma extremamente chamativa ou pelos temas levantados pelo roteiro e concebidos pela imagem? Ora, por tudo isso.

A obra de Otomo é uma overdose. Os prédios que consomem o horizonte e são animados em plano holandês, as luzes de uma das cidades mais modernas do mundo e o neon das motos da gangue de Kaneda servem todos a essa overdose. É preciso lembrar do contexto. Akira é uma obra concebida no período de uma enorme explosão econômica e tecnologia do Japão, que hoje é uma das maiores economias do mundo e maior referência tecnológica do planeta, mas que nos anos 80, ainda descobria sobre esse seu futuro e ainda lamentava os traumas da segunda guerra (uma bomba em um filme japonês nunca é um mero elemento dramático).

O que temos, seja intencional ou não, é essa overdose de ideias e estímulos e um apontamento sobre quem são as vítimas dessa confusão que habita o imaginário japonês. As vítimas do governo autoritário, no filme, são os jovens. Quem morre nas brigas de gangue são os jovens. Quem não consegue sequer olhar para o quadro de uma sala de aula são os jovens. Akira é, em suma, um filme sobre como toda essa incerteza trazida pelos traumas e pela transição cultural do país na época, afetou a mente de suas crianças e adolescentes.

Não parece ser uma mera escolha dramática que Tetsuo perca o controle de seus poderes e, assim, se torne um bebê gigante que tem o corpo de andróide e que evolui para uma bomba que consome todo o território de Tóquio. Estão impressos no personagem todas as tensões pulsantes do cenário apresentado. Sequer ouvimos falar dos pais do jovem, que era só mais um adolescente rebelde e que se vê consumido pela tecnologia, pela violência e, principalmente, pelo medo. Medo do ambiente, de si mesmo e principalmente do futuro.

Há um constante sentimento de que a qualquer momento tudo irá pelos ares, e todas as luzes tão bem animadas do filme serão substituídas por uma só: a da bomba. A tal overdose que mencionei, mostrando como todo esse cenário pode criar uma mente destrutiva e violenta. Akira é um filme que mapeia as dores de um país marcado por suas derrotas e evidencia os medos de uma geração em conflito ao ver sua tradição sendo engolida pela modernidade. Não há sequer uma cena no filme que referencie o Japão histórico, calmo e tradicional, que costumávamos ver na arte até o período. Só há jovens arrancados de suas vidas tentando sobreviver em uma cidade que vai explodir a qualquer momento.

A tragédia do filme, portanto, é a jornada de Tetsuo e de todas as crianças com poderes que vemos na história. São figuras fadadas a sofrer, seja por estarem abandonadas nesse cenário de insegurança e medo ou por terem sido sequestradas e usadas por um governo que queria testar seus dons. São humanos vendo suas humanidades sendo transformadas em arma (o medo de uma nova guerra), é a tecnologia engolindo um país que cresceu rápido demais e cuja população talvez não estivesse tão pronta para uma mudança tão repentina. Akira é um retrato brilhante das mazelas de um povo confuso diante de tantos estímulos culturais, sociais e políticos que se somam como uma bola de neve e o impedem de ter a mínima estabilidade psicológica diante de uma catástrofe iminente. 

E o que torna Akira tão bom, acredito eu, ser a capacidade de desapegar de explicações profundas e se ater justamente ao mais básico, deixando a complexidade ser muito mais visual e instintiva. Kaneda se apaixona por uma personagem porque… Sim. Talvez porque ela curiosamente seja visualmente parecida com ele e ele busque a mínima identificação por viver em um lugar com tanta pluralidade. Talvez porque os sentimentos dos personagens sejam totalmente vazios em um ambiente com tantos estímulos vindo de todos os lados e levando a lugar nenhum. O fato é que nem religião, nem política e muito menos amor parecem ser capazes de evitar aquela tragédia, mas pelo menos um pouco de amizade faz com que aqueles jovens consigam encontrar o mínimo amparo quando o fim do mundo chegar.

Sair da versão mobile