Crítica sem spoilers da primeira temporada de “Altered Carbon”. Para ler sobre o episódio-piloto, clique aqui.
“Altered Carbon” começa com um visual arrebatador, inúmeras referências à ficção científica, um clima “cyberpunk neon-noir” digno de “Blade Runner“ e uma premissa original, instigante e profunda: qual o valor da vida em uma sociedade que venceu a morte?
Feitas as promessas no primeiro episódio, a nova produção da Netflix usa os próximos nove para quebrá-las, uma por uma. Mesmo a direção de arte, após criar um mundo visualmente inventivo no piloto, cai no lugar comum de alternar ambientes escuros a outros iluminados como hospitais do futuro. Personagens existem para empurrar para frente uma trama que facilmente preencheria o dobro de episódios, mas começa a se esgotar antes da metade. Conceitos são apresentados de acordo com a necessidade do roteiro e suas reviravoltas não atingem o efeito esperado.
O primeiro ponto particularmente irritante em “Altered Carbon” é o uso recorrente – e desnecessário – de narrações em off: ao início de cada episódio, Takeschi Kovacs (Joel Kinnaman) faz um monólogo tão genérico quanto “ao viverem pra sempre, as pessoas param de temer a morte: mas temer a morte é bom”. A ideia é usar estas “lições” de guias temáticos para o desenrolar dos episódios, mas têm a profundidade de um biscoito da sorte chinês.
Quando uma produção não tem confiança em si, é fácil notar: ela começa a fazer repetidas referências à própria trama, como que lembrando ao espectador da importância de determinados eventos. Enquanto investiga a morte de Laurens Bancroft (James Purefoy), Kovacs esbarra em dois outros crimes. Eventualmente, informações sobre estes crimes serão importantes para solucionar o grande quebra-cabeças.
O problema está no “eventualmente”: antes de se fazerem necessários, estes crimes são completamente esquecidos pelo roteiro, a ponto de flashbacks serem necessários para a audiência relacionar A com B. Além de incompetente (um roteiro bem escrito amarraria estas pontas naturalmente), tira qualquer sutileza de uma série sobre investigação. Não é preciso ser nenhum “Xeroque Rolmes” para descobrir, na altura do sétimo episódio, os mistérios “revelados” pela série no décimo. O mesmo vale para personagens: profundos como uma folha de papel, o elenco de apoio serve apenas para ajudar e/ou motivar os protagonistas Kovacs e Kristin Ortega (Martha Higareda) a cumprirem tarefas que mais parecem fases de um videogame fácil.
Mas o mais irritante na série é a sua displicência para tratar dos temas que a fariam especial. O avanço da ciência em um mundo desigual, onde o Estado existe para cumprir os caprichos dos poderosos e oprimir os miseráveis, não faz do mundo um lugar melhor, apenas aumenta a desigualdade. Mas, salvo em momentos pontuais, essa desigualdade não é explorada. Quando Deckard mata uma replicante e vê em seus olhos mais humanidade do que havia visto até então durante toda a sua investigação em “Blade Runner”, temos mais conflito sobre certo e errado do que nas quase dez horas de “Altered Carbon”.
Além do poder do dinheiro, o conflito moral de viver pra sempre é subutilizado. A família de Ortega, mexicanos neo-católicos, serve apenas para lembrar a policial do “pecado” de voltar dos mortos em outro corpo. Ortega renega sua formação religiosa, mas esse embate com a mãe existe por existir. Fora as opiniões das duas, não temos nenhuma informação para pensarmos sozinhos sobre a questão e decidirmos o lado que apoiaremos. Kristin vive entre os dois lados, numa posição conveniente para o roteiro.
A ideia da edição de contar sobre as duas “vidas” de Kovacs em paralelo, mais convencional que ir a um casamento vestindo terno, serve apenas para criar um falso suspense entre o que vai acontecer em cada linha do tempo. Quando uma se torna minimamente interessante, a série volta para a outra. Isso não funcionou na primeira temporada de “Arrow“ e também não funcionou aqui.
De positivo, duas atuações: Matt Biedel, em pouco menos de 15 minutos, interpreta um arruaceiro neonazista, uma idosa latina e um mafioso russo. Alterna sotaques, trejeitos e expressões de forma convincente. Já Chris Conner, que começa com um Poe transitando entre poeta e maníaco, termina a temporada como o personagem mais humano de todos, mesmo sendo uma Inteligência Artificial (toda a subtrama das IAs também é abordada com a efetividade de uma colher de chá raspando um iceberg), encerrando seu arco com uma belíssima reinterpretação do poema Annabel Lee.
Mas não é o bastante. Trama previsível, soluções preguiçosas, um último episódio em que os enigmas já estão solucionados e tudo se resolve na pancadaria e uma conclusão entre “Casos de Família” e “Você na TV”. “Altered Carbon” já está disponível no catálogo da Netflix e você pode tirar suas próprias conclusões clicando aqui.