Para ler a crítica do primeiro episódio de Anne, clique aqui. Os comentários abaixo são sem spoiler.
Um dos principais méritos dessa nova produção da Netflix é desvelar para o grande público uma série de livros infantis do começo do século XX, quase contemporâneos ao clássico As aventuras de Tom Sawyer, do americano Mark Twain, mas escritos por uma mulher. Se a obra da canadense L.M. Montgomery já vendeu mais de 50 milhões de cópias, a verdade é que não goza do mesmo prestígio de outros escritores de sua época, algo que inteligentemente é abordado no texto da roteirista Moira Walley-Beckett.
Anne retrata um recorte social muito particular: uma vila fictícia na província de Prince Edward Island no final do século XIX. Mas o que choca não são as diferenças entre a vida de hoje e a vivida neste canto perdido do Canadá. São as semelhanças.
A sociedade estratificada, onde homens e mulheres têm papéis definidos desde o nascimento, sem muita margem para escolhas, ainda é realidade para muitas crianças hoje. O exemplo da jovem Malala, que sofreu uma tentativa de assassinato por ir à escola, pode parecer distante. Mas em São Paulo, principal cidade da América Latina, existe uma “escola de princesas” para que meninas a partir dos quatro anos aprendam a cuidar da casa.
O pânico pelo diferente, que se reverte em preconceito, também não é um martírio exclusivo da pequena Anne: o Reino Unido escolheu sair da União Europeia para fechar as suas fronteiras, enquanto os Estados Unidos elegeram presidente um homem disposto a construir um muro para barrar a entrada de mexicanos no país. O que Anne faz muito bem é colocar como vítima deste preconceito irracional uma personagem carismática, a magnética Amybeth McNulty.
É recorrente na série que Anne se considere feia e odeie seu cabelo ruivo. O espectador pode cair no erro de contra-argumentar mentalmente “mas ela tem cabelos lindos!”, quando a verdadeira intenção narrativa é questionar por que existe um padrão de beleza e qualquer pessoa fora dele é crucificada. Ao colocar uma protagonista perfeitamente dentro do padrão de beleza do público, o faz perceber que o preconceito é estúpido, exatamente por simbolizar a incapacidade de admitir belezas com as quais não está habituado.
Pessoas com um senso crítico mais aflorado perceberão que fazem isso de forma corriqueira. A cena do piquenique, que talvez esteja fora do tom para ser aplicada literalmente no século XXI, nada mais é do que uma representação do que forma o preconceito: quando os irmãos mais velhos, os pais e até mesmo o padre da comunidade fazem comentários maldosos sobre uma criança órfã, é natural que as crianças pequenas considerem que aquilo está certo.
Com sete diretores, é um belo exercício reparar como cada um representa os mesmos sentimentos. A equipe técnica se mantém, mas desde a aplicação de cores, figurinos e enquadramentos, os episódios têm assinatura.
Mantenho o que disse na minha crítica do episódio-piloto: Anne é uma série infantil. Mas a forma lúdica com que aborda temas como preconceito, rejeição, autoconfiança e emancipação feminina não tira absolutamente a força da mensagem. A série inclusive cita nominalmente o romance protofeminista “Jane Eyre”, uma bússola moral para Anne, e a autora Mary Ann Evans, que precisou assinar seus sete livros como George Eliot para ser levada a sério no mercado literário.
O principal ponto negativo, entretanto, é a falta de coragem para encerrar a história com o término da temporada. É um universo encantador, e tenho certeza que a série não será cancelada. Criar um gancho, que sequer é interessante, apenas para as pessoas “precisarem” de uma continuação dá à experiência, até ali muito agradável e reflexiva, uma ponta de frustração.
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