É interessante como Marcelo Martinessi, diretor e roteirista de As Herdeiras, trata o público como se fosse um personagem do filme. A protagonista, Chela (Ana Brun), é uma mulher de meia-idade que, por se ver em crise financeira e ter sua única companheira, Chiquita, presa por fraude fiscal, põe seus bens à venda e passa a trabalhar como taxista em Assunção, no Paraguai. Acompanhamos, portanto, a rotina dessa motorista que dirige pelas ruas da cidade, guiando suas clientes – todas mulheres – enquanto ouve suas histórias. Há, porém, um deslocamento de Chela em relação ao mundo. A protagonista deliberadamente não se encaixa; Chela cria um distanciamento a fim de preservar sua intimidade, algo que se reflete na forma como os elementos narrativos são orquestrados, fazendo com que até nós, o público, sejamos invasores dessa bolha.
O roteiro de As Herdeiras é, devido ao isolamento de sua protagonista, extremamente econômico. Pouco nos é entregue sobre o passado da protagonista – apenas o suficiente para que a trama faça sentido. É como se Martinessi também não conseguisse penetrar por trás da máscara de uma mulher que parece estar sempre em estado catatônico, à espera de algo para mudar sua vida. Esse distanciamento reflete em uma narrativa que é construída com minúcia e tempo – a sexualidade de Chela, por exemplo, mesmo quando explorada, é tratada de forma deliberadamente superficial.
Como resultado, temos a impressão de assistir à obra, em sua completude, pela fresta deixada por uma porta entreaberta – que é, inclusive, o plano que abre As Herdeiras. Recebemos informações em doses homeopáticas, o que pode até nos deixar imaginar como Chela se sente, mas nunca sequer chega perto de nos fazer adivinhar o que a taxista pensa.
O mais fascinante de As Herdeiras, porém, é o resultado do trabalho de Martinessi e seu diretor de fotografia, Luis Armando Arteaga. O posicionamento da câmera é sempre uma escolha primordial na construção de qualquer mise-en-scène, mas o que vemos em As Herdeiras é um trabalho que foge do convencional: a câmera exclui o espectador de muitas das cenas a que assistimos. Filmando a protagonista de costas, Martinessi e Arteaga fortalecem, visualmente, o que o texto já deixava implícito: o desejo por manter um exílio emocional.
Em contraste com o desejo por distância de Chela, a câmera de Martinessi mantém-se sempre próxima da mulher, fazendo uso principalmente de planos médios e close-ups, tornando explícito o incômodo da motorista. E não deixa de ser irônico, portanto, que ela passe a trabalhar como taxista, levando mulheres aos seus destinos enquanto não sabe qual é o seu próprio. Chela, aliás, constantemente experimenta óculos escuros e os usa como uma forma de manter-se distante das pessoas. É como se a personagem vivesse no piloto automático, enquanto gostaria, na verdade, de estar em uma caverna.
Essa caverna está no filme de forma metafórica. O belíssimo trabalho de iluminação de As Herdeiras faz uso constante de contraluz, deixando personagens constantemente “apagados” e escurecidos – e não é por acaso que isso ocorra, principalmente, no lar da protagonista –, fazendo com que muitos ambientes pareçam estar distantes da luz, como se eles estivessem em cavernas escuras. Devido a isso, a trajetória de Chela acaba sendo, de certo modo, uma jornada para fora de sua caverna.
Nada poderia ser mais simbólico do que a protagonista estar se desapegando dos bens guardados nessa caverna; é como se a continuidade da vida de Chela dependesse do abandono do passado. O que torna As Herdeiras tão belo, porém, não são seus predicados técnicos, mas a coesão de sua proposta. Se o filme de Marcelo Martinessi mostra que sua personagem principal pretere tanto o contato humano quanto o próprio espectador, é poético constatar que, ao fim, quando Chela decide se sai ou não de sua caverna, o público só saiba quando há muito a decisão já havia sido tomada.