Se você ainda não assistiu a Atypical, talvez se interesse em ler a nossa crítica de “Antártida”, primeiro episódio da série original da Netflix. O link é esse.
Quem gosta de audiovisual e estuda sobre o assunto, mesmo que de forma amadora, pode encontrar em Atypical um belo exemplo de como a edição/montagem é fundamental para contar uma história. Não há bom texto que sobreviva a decisões ruins dentro de uma cena ou entre arcos narrativos. O primeiro episódio, editado por Sandra Montiel, peca pelo fluxo inorgânico entre um evento e outro, tornando boas cenas em amontoados. Tudo muda quando David Codron assume no segundo episódio. Basicamente, a série começa a fazer sentido.
A estrutura familiar em que uma pessoa tem uma condição especial e as que estão no entorno passam a viver em função disso não é nem perto de nova. Rain Man aborda exatamente o autismo e é uma excelente recomendação para quem se interessou pelo tema e quer ver mais produções sobre ele. Em certo nível, Atypical tenta cumprir o mesmo checklist de Rain Man, mas falta equilíbrio nas variações de tom. E a genialidade de um Barry Levinson ajudaria, sem dúvida.
Existem boas ideias na produção da Netflix e o uso de uma consultoria especialmente para assuntos sobre autismo garante extrema sensibilidade na construção de Sam, que tem em seu intérprete Keir Gilchrist o melhor valor individual da série – ele já havia mostrado talento em Corrente do Mal. Isso se faz notável quando, no meio da temporada, um gesto banal para uma pessoa neurotípica provoca comoção. Atypical é certeira em conscientizar o público leigo sobre como um autista interage com o mundo.
O que faz dela uma série “na média” é a forma como, na maioria das vezes, usa de alívios cômicos fora de hora ou desproporcionais. Citando novamente Rain Man, é hilária a cena do jantar em que Raymond se nega a comer quatro filés de peixe, pois ele sempre come oito, e seu irmão Charlie, à beira de um ataque de nervos, corta os filés no meio e diz “agora são oito!”. Mas esse diálogo está inserido no contexto maior da construção de um relacionamento em meio a uma viagem forçada. Com o passar do tempo, Charlie compreende o irmão e essas peculiaridades deixam de irritá-lo. No caso de Atypical, Sam tem 18 anos, sempre viveu com a família e as pessoas na escola sabem da sua condição, assim como seus amigos. Seu comportamento incomum não tem motivo para causar estranhamento em pessoas conscientes de como a mente de um autista funciona. Em última instância, tal distúrbio não é uma “mania”: enfiar gags sem necessidade só serve para desconstruir o peso dramático de um personagem tão bem construído por Gilchrist.
Os personagens do núcleo familiar também têm seus arcos incompletos: Elsa é uma mãe que se sente especial pela importância que tem na rotina de Sam, mas a decepção inicial pela crescente independência do filho é abandonada em certo ponto, quando ela se torna apenas uma pessoa problemática. Doug tem uma história pregressa que merecia mais desenvolvimento e Casey, com um arco próprio interessante, sofre uma quebra de coerência quando passa a adotar um comportamento incondizente com a sua postura inicialmente estabelecida.
Os personagens secundários servem apenas para motivar os quatro protagonistas, tendo a profundidade de uma colher de chá. Evan, namorado de Casey, não tem uma linha de roteiro dedicada a falar sobre o que ele faz quando não está com ela. Nick, o barman, parece uma versão em áudio de um livro de autoajuda escrito pelo Oliver do “Teste de Fidelidade”, tamanha a quantidade de frases óbvias ditas com canastrice. Honrosas exceções de Nik Dodani, que interpreta Zahid, amigo e colega de trabalho de Sam, único alívio cômico bem sucedido, e Jenna Boyd, intérprete de Paige, que consegue ser ao mesmo tempo eufórica, estabanada, passional, sensível e compreensível. Uma situação pontual que também merece elogios é a forma como pessoas podem usar o autismo de uma pessoas para atingir seus familiares.
Atypical, derrapando aqui e acolá, tem momentos visualmente memoráveis e deixa ganchos para uma eventual continuação. Mas a Netflix já não é mais a mesma e o cancelamento de Gypsy (nossa crítica está aqui) serve de alerta: não dê a renovação por certa. A melhor coisa a fazer é assistir à primeira temporada.