Plano Aberto

Batman: A Piada Mortal

Diante de uma perspectiva onde a existência humana é louca, casual e sem finalidade, quem poderia culpar os psicóticos por suas personalidades? Ao homem comum, qualquer outra reação se não a insanidade seria loucura. Esta é a narrativa que A Piada Mortal traz na perspectiva do Coringa para justificar a possibilidade de uma linha tênue, tematizada entre a sanidade e a loucura, o bem e o mal, o moral e o imoral. Nesta densa e complexa história escrita por Alan Moore em 1988, o Coringa, dentre outras coisas, aleija, estupra, mata e tortura, justificando-se a partir de um dia ruim. Para ele, bastaria isso para que o mais são dos homens mergulhasse num caminho sem volta rumo à loucura. O relativismo do Príncipe Palhaço do Crime estabelece um contexto ao qual remete a raiz de seu nome. Como no jogo de cartas, o Coringa aqui não contém em si nenhuma classificação que o enquadre valorativamente mas, em qualquer posição, pode assumir diferentes papéis e valores.

Dando força ao formato das graphic novels, tendo antes sido consagrado por Watchmen (1987) e V de Vingança (1982-1988), Alan Moore juntou-se aos também britânicos Brian Boland (Camelot 3000) e John Higgins, responsáveis pela finalização artística do trabalho. A grandiosidade da obra final dos três se justifica pois, sem dúvidas, foi através do traço de Bolland e da coloração dada por Higgins que se consolidou a icônica figura do Coringa à qual hoje estamos acostumados. Além disso, ao contrário da comum valorização das técnicas de investigação, de luta e da linearidade dos acontecimentos, somos apresentados a um embate onde o que está sendo tematizado são as raízes psicológicas do universo ficcional de Batman e seu algoz. A genialidade de Alan Moore transposta para a história nos apresenta uma narrativa onde o acerto de contas entre Coringa e Batman acontece de modo inusitado e completamente diferente daquilo no qual já havia sido escrito nas histórias do morcego. Detalhadamente, trazendo uma perspectiva circular no modo de contar a história, Alan Moore intercala perfeitamente as transições temporais sem perder a construção narrativa desejada.

Cabe ressaltar que foi a partir de A Piada Mortal que, canonicamente, a história da origem do Coringa ganhou contornos definitivos e se consolidou. Adentrando nos meandros de sua origem, somos apresentados a um fracassado humorista que sofre pela incapacidade em garantir as condições básicas de sustento de si e de sua esposa grávida. No mesmo dia em que toma ciência da trágica morte de sua esposa, o humorista infeliz, numa tentativa desesperada, aceita uma proposta de trabalho participando de um assalto, vestindo-se de Capuz Vermelho. Na hora do ato, seus planos acabam frustrados. Ao fugir da perseguição de Batman, o pretenso Capuz pula num tonel de produtos químicos que o levaria até o esgoto da instalação. A partir daí, a caracterização do Coringa é estabelecida ao nos depararmos com uma criatura completamente diferente do homem que antes havíamos conhecido. Desta maneira, somos apresentados ao “dia ruim” do Coringa.

No grandioso trabalho de Bolland e Higgins, o Coringa aparece explicitamente, após a sucessão dos fatos de seu dia ruim, num enquadramento fechado com cores vívidas, contrastando com um fundo que nos remete a risada clássica do personagem, mas agora com um tom um tanto psicótico ao mirar diretamente para nós, os leitores.

A transição entre a história de origem do Coringa e a sucessão de fatos na linha temporal do presente é feita de modo genial. Alan Moore contrasta a origem do personagem com a série de atrocidades à qual, no desenrolar da história, o Coringa submete o Comissário Gordon. Numa das sequências mais desesperadoras e cruéis das histórias do morcego, o Comissário é submetido a uma sucessão de torturas impostas por Coringa. Além do mais, é exposto a cenas de sua filha, Bárbara Gordon, nua, baleada, e agonizando com sangue em partes baixas que conotam um estupro. Isto se desenha na tentativa do palhaço de justificar sua tese da linha tênue entre sanidade e loucura. O dia ruim de Gordon, então, é proporcionado pelo palhaço. Eventualmente, Batman localiza o local da tortura e disso se sucede uma profunda narrativa com robustez psicológica poucas vezes vistas antes em histórias em quadrinhos.

Em A Piada Mortal o maniqueísmo que deu vida às histórias em quadrinhos desde a Era de ouro é completamente deixado de lado. Trata-se agora de contar a história em sua exposição factual, valorizando o lado humano dos personagens. A divisão bem e mal ainda está presente, mas o conflito, o desejo, as angústias, o medo e os anseios de heróis e vilões são trabalhados de modo que se ignore uma personalidade mecânica dos personagens. Isto vinha sendo um recurso bem utilizado nos anos 80 nas histórias de Batman, principalmente com Batman: ano um e O Cavaleiro das Trevas, ambas de Frank Miller. Se nestas histórias somos defrontados com o morcego enfrentando seus próprios demônios questionando psicologicamente seus valores, sua posição e suas ações, em A Piada Mortal o Coringa lida com todas essas questões, mas isso não parece ser um problema para ele. Seu relativismo internalizado serve como justificativa para tudo aquilo no que ele se tornou.

O diálogo que se segue entre os dois personagens nos faz perceber que as origens daquilo no que os dois se tornaram têm a mesma raiz: tragédias capazes de mudar a relação de cada um consigo mesmo e com o mundo. Entretanto, o que faz com que Bruce Wayne se transformasse em Batman, o humorista fracassado em Coringa, e ao Comissário Gordon nada acontecesse, é a grande interrogação que Alan Moore nos brinda e que poderia trazer um conforto, uma alternativa à tese principal do Coringa. Se Batman e Coringa tem suas origens cristalizadas partir das mesmas condições, mas as posições na qual lidam com o mundo é marcada por uma discrepância central, caberia a partir disso afirmar uma determinação ética natural em alguns e ausentes em outros?

A última cena, entretanto, apresenta uma finalização completamente inconclusiva a respeito das interrogações que a própria história levanta. Nela, Batman surpreendentemente gargalha desesperadamente com o Coringa ao mesmo tempo em que segura o palhaço pelo pescoço. De repente, a caracterização que remetia às gargalhadas se sessam e a história termina. Batman matou o Coringa? Se sim, isto poderia levar a crer que a linha tênue apresentada no argumento do palhaço foi ultrapassada pelo morcego explicando que talvez a loucura de Batman estivera internalizada o tempo todo. Na verdade, se esvairia o caráter outsider do Coringa.

Podemos dizer que, analisando os meandros da história, esta é a motivação central que dá vida a trama: O Coringa em sua busca de reconhecimento. Desta maneira, ele não seria estranho a qualquer outra pessoa. A loucura seria um estado mais próximo do que poderíamos imaginar e, para alcançá-lo, bastaria apenas um dia ruim.

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