Após passar muito tempo nas “sombras”, Black Mirror encontrou fama ao ser comprada pela Netflix. Além de trazer os sete episódios já existentes, o serviço de streaming lançou uma terceira temporada com mais seis capítulos inéditos. Com a nova fase, vieram as discussões. A série, que antes, no Brasil, era conhecida por um pequeno nicho de fãs, agora é uma das mais faladas do momento e tem suas tramas comentadas em inúmeros fóruns, artigos, resenhas e críticas pela internet.
Nessas discussões, é possível notar uma recorrente e extremamente equivocada ideia que tenta sintetizar a proposta de Black Mirror. A série é tratada como uma crítica aos avanços tecnológicos e à relação dos humanos com esses avanços. Essa análise não poderia estar mais errada.
Black Mirror é, acima de tudo, uma série sobre nós, humanos. É sobre como nós nos vemos, como sentimos, como tratamos nossos semelhantes, pensamos e agimos. É sobre como tratamos o meio ambiente e os miseráveis. Charlie Brooks, seu criador, critica imperialismo, xenofobia, racismo, manipulação e controle de massas. Critica a face sombria da humanidade que nós relutamos em aceitar e corrigir. Talvez o próprio tenha previsto essa confusão do público, o que justificaria o piloto ser justamente o único episódio não distópico do programa.
A tecnologia exerce apenas função narrativa no programa. Funciona para potencializar e superexpor características da nossa sociedade. Quando um personagem encomenda uma réplica robótica de seu falecido companheiro, o tema não é a modernidade, e sim a não aceitação da morte.
Assim como quando um fuzil é usado na guerra ele não é culpado pela violência, quando centenas de jovens usam uma rede social para humilhar e destruir uma pessoa, a tecnologia não é culpada. Como a arma, ela é apenas a ferramenta usada para expor um lado sombrio e doentio do ser humano.
Essa crítica ao ser humano é observável em todos os episódios. Em Quinze Milhões de Méritos observamos como atitudes “anti-sistema” também são também parte do sistema e como a coerção (interna e externa) pode destruir psicologicamente um indivíduo. Outro exemplo? Em Hino Nacional temos uma análise de como o ser humano, de forma doentia, transforma a dor e ódio alheios em entretenimento.
Na terceira temporada essas críticas são mais intensas nos episódios Perdedor e Engenharia Reversa. Ambos também utilizam tecnologias futuristas como ferramentas narrativas. No primeiro, as redes sociais ajudam a construir uma caricatura de como a sociedade atual abandona cada vez mais a individualidade, se importando somente com a presona criada para agradar terceiros. No segundo vemos como os governos fazem lavagem cerebral em seus soldados a fim de criar máquinas de guerra.
A interpretação de que Black Mirror faz referência às telas dos celulares é valida, mas incompleta. Se analisarmos a série em sua proposta inicial, principalmente no primeiro episódio, é impossível não ver Black Mirror (Espelho Negro) como um reflexo da sociedade. Cada capítulo traz uma reflexão sobre uma característica obscura do ser humano, e é isso que torna a série tão especial.
A tecnologia, afinal, é só mais uma das ferramentas que o ser humano utiliza no seu eterno processo de autodestruição. Quando não há smartphones, o ser humano destila seu ódio por fuzis. Quando não utilizou armas de fogo, lá estavam as espadas, lanças e machados. O ódio e a violência estão intrínsecos na nossa espécie, havendo inclusive pesquisas que sugerem que a violência humana está condicionada em nossa linha evolutiva.
Portanto, não, Black Mirror não é sobre “os perigos da tecnologia” e muito menos sobre o futuro. É uma série sobre presente e passado, criando distopias que escancaram nossos problemas, inconscientemente gritando: mudem. O tema, aliás, foi muito bem explorado também no fantástico filme Filhos da Esperança, de Alfonso Cuarón. A realidade das histórias da série não está “próxima”, ela está acontecendo agora. Nos resta abrir os olhos e tentar mudar algo, antes que seja tarde demais.
Nós escrevemos sobre todos os episódios da terceira temporada da série, convidamos você a ler e assistir. Abaixo, o link de nossas críticas:
Episódio 1: Perdedor
Episódio 2: Versão de Testes
Episódio 3: Cala a Boca e Dança
Episódio 4: San Junipero
Episódio 5: Engenharia Reversa
Episódio 6: Odiados Pela Nação
Além destes, há crítica de um episódio da segunda temporada:
Episódio 1: Volto Já