Plano Aberto

‘Cat person’ e outros contos

Cat Person e Outros Contos Kristen Roupenian Companhia das Letras

Numa simplificação – bastante grosseira, devo admitir – do gênero, autores de horror podem ser divididos nas categorias “Horror Stephen King” e “Horror Lovecraft”. O primeiro foca nos personagens, enquanto o segundo oprime o leitor com um universo além da sua compreensão. “‘Cat person’ e outros contos”, antologia da estreante Kristen Roupenian, reúne histórias destas duas categorias. Mas mesmo quando seus contos utilizam elementos fantásticos, é nos personagens que ela se refugia para torná-los inquietantes.

Algumas ressalvas precisam ser feitas: reduzir Roupenian ao gênero do Horror é limitar a versatilidade de uma autora estreante que captura a atenção do leitor desde a primeira página. Contos como “Seu safadinho” e “O garoto na piscina” estão muito mais próximos do suspense e do drama, por exemplo. E levar as comparações a King e H.P. Lovecraft ao pé da letra também é menosprezar toda as sutilezas que tornam a leitura do livro única. Pense nestas associações como pontos de partida. Daqui em diante, vamos mais fundo nas particularidades da autora.

Todo conto em “Cat Person” (ainda abordarei o conto que empresta seu nome ao livro) provoca uma sensação parecida de desconforto. Isso, de fato, aproxima Roupenian do Horror. “Sardinha” e “Não se machuque” trabalham abertamente com o sobrenatural. Já “Os corredores noturnos” e “O sinal da caixa de fósforos” insinuam a presença de elementos fantásticos. Entretanto, histórias como “Cat Person” (agora sim, o conto) e “O cara legal” (talvez a melhor história do livro) não têm nada de “anormal”. São histórias que poderiam acontecer – e acontecem – com você diariamente.

Em 2017, o conto “Cat Person” viralizou no site da revista New Yorker (foto de Elinor Carucci)

A “montagem” (uso aspas porque estou pensando na aplicação cinematográfica do termo) feita pela edição brasileira da Companhia das Letras tem um papel fundamental: individualmente, os contos são menos coesos do que quando lidos na exata ordem proposta. As conclusões – sempre surpreendentes, às vezes perturbadoras – dos cinco primeiros contos emprestam à leitura de “Cat Person” uma atmosfera de apreensão que não seria possível se o conto abrisse a coletânea. E isso não é apenas um truque barato para “melhorar” a história. Esta apreensão está em perfeita sintonia à situação, mas não seria sentida porque nós, leitores, estamos habituados a ela e não damos a devida dimensão dos riscos em nos relacionar com estranhos. Se déssemos, o Tinder nasceria morto.

Há um termo em Inglês que define perfeitamente a escrita de Roupenian: relatable. A tradução para o Português, “relacionável”, perde parte do sentido original do termo. Relatable está mais para uma combinação entre “relacionável” e “identificável”. Enquanto a história de Margot e Robert (para ficar no conto-título do livro) é contada, o leitor fatalmente se verá em um dos dois papéis. Ou reconhecerá alguém que tenha passado pela mesma situação. Na pior das hipóteses, conseguirá se imaginar naquela situação. E ver um mundo ficcional como possível é meio caminho andado para uma história de sucesso.

Numa época em que o espaço para autoras que escrevem sobre relações humanas/amorosas é preenchido indigentemente por figuras como E.L. James e seus “50 Tons de Cinza”, alguém como Kristen Roupenian, que dá a elas um tom realista e inquietante, flertando com o terror, é mais do que revigorante: é necessário.

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