É comum utilizar o termo “máquina” para se referir ao Estado. Máquina pública, máquina judiciária. Entende-se a lógica dessa denominação no sentido de que o poder público é regido pela impessoalidade que busca a eficiência, além de que cada órgão (e seus funcionários) funciona como peça de uma grande engrenagem. Ou seja, uma versão organicista do Estado adaptada em termos da Revolução Industrial. Pensa-se no Estado como um grande ente abstrato que irá agir em prol do povo. Mas, afinal, quem está por trás dos panos?
O que faz Frederick Wiseman é justamente o desmembramento desse organismo, dando individualidade para cada um de seus órgãos. Há a divisão do todo pelas partes. A prefeitura de Boston não é um ente autônomo, mas os esforços coletivos de um prefeito (evidente que mais protagonista que os outros), os policiais, bombeiros, coletores de lixo, os controladores da câmera de trânsito, os pesquisadores, os conselheiros de assuntos oficiais. Das atividades mais banais que atingem um só indivíduo (multa de carro e inspeção sanitária em residências) à discussões que afetam toda a sociedade. Dos eventos práticos às solenidades de valor simbólico (dia dos Veteranos de Guerra). Há espaço para todos serem pequenos protagonistas wisemanianos. As quatro horas de duração, assim, não só são inevitáveis como também são uma afirmação política. Evidentemente, a grande quantidade e variedade de eventos mostrados criam uma ideia de onipresença, de um Estado que cuida e se importa com tudo que está possível ao seu alcance. Por outro lado, ressalta-se que governar é, sim, trabalhoso e muitas vezes burocrático.
Wiseman, ao escolher aquilo que entra no corte final de seu filme ou não, obviamente se mostra muitíssimo interessado nas medidas progressistas do prefeito Marty Walsh e seu governo em Boston. Muitas das reuniões e debates são sobre a importância da integração das minorias (aqui, em lato senso, que vai desde o veterano de guerra ao asiático). Vê-se uma política humanitária, de acolhimento. Alguns mais maldosos poderão falar que o veterano diretor está mostrando é quase uma utopia morusiana, mas a direção no filme parece mais no sentido de um manifesto político de que “este é o caminho” a ser seguido. Ao mesmo tempo, Wiseman não parece tão utópico ou ingênuo assim, uma vez que o corte final também nunca escute as críticas que o povo precisa fazer. Portanto, o que Wiseman faz não é oferecer apenas o plano (Estado), mas uma dialética entre plano e contraplano (O Povo). Afinal, o que City Hall está nos mostrando por 4 horas? Reuniões entre membros do Estado e audiências públicas, principalmente. Pessoas ouvindo as ideias das outras, debatendo, evidenciando seus problemas, mostrando suas insatisfações, pensando em soluções. Política é, portanto, diálogo.
São momentos sutis e minoritários em City Hall, mas Wiseman também sempre intercala as longas cenas internas de reuniões em salas fechadas com alguns planos gerais da cidade em seu exterior enquadrando tanto a paisagem urbana quanto natural. Afinal, não se pode esquecer que, ainda que as grandes decisões sejam tomadas dentro de quatro paredes, as consequências estão lá fora, no mundo. Apropriando-se de uma visão organicista, quando Wiseman faz este jogo entre ambientes interiores e exteriores, é interessante pensar que o filme todo é como um grande raio X de Boston, revelando a estrutura interna (indivíduos) que trabalham nos bastidores para que toda a superestrutura funcione.