Corpo, drogas e cinema punk

Corpo, drogas e cinema punk

Um eterno ciclo de desejos, o gerar, o crescer, o viver e o morrer.

Lorrana Melo - 12 de novembro de 2020

Não existe gênero e nem explicação nos corpos apresentados no cinema punk, é como se fosse impossível te explicar o que se passa nos filmes. A narrativa depende, única e exclusivamente, de quem assiste, e como poderia eu delimitar tanto a reflexão com palavras que induzem o pensamento? O que vou falar aqui não é oposto ao que você pensou ao assistir, é simultâneo.

Com “Lucifer Rising”, Kenneth Anger (1973) exibe um jogo de cores e formas psicodélicas de puro erotismo e imagens de sonho. O círculo vermelho e os triângulos azuis que contornam a, talvez, primeira mulher do mundo com poder e autoridade. Um jogo de cenas do que acredito ser Eva, Adão, o Diabo, o fruto proibido e a cobra se constroem em vermelho sangue, azul marinho, verde mata, laranja, magenta e tantas outras cores que te fazem viajar no mais profundo desejo do prazer transgressor.

O travesseiro que o personagem deita dá olhos para a sua cabeça: na cena seguinte seu corpo é silhueta de um círculo que mais parece a investigação de um microscópio totalmente psicodélico que emite fluidos da cabeça do possível Lúcifer. Ao acordar, com sua vestimenta de triângulos coloridos ele tem todo o poder do fogo do inferno. Com o despertar de Lúcifer temos o nascimento  da morte e seu percurso pela terra, carregado de tons azulados no ambiente e vestindo preto. O ritual satânico traz mais um triângulo e o rei do inferno gira em círculos enquanto um pisca-pisca de traços acontecem no fundo. O resultado da cerimônia nada mais é que uma figura vestindo uma jaqueta de couro escrito “Lúcifer” com as cores do arco-íris. Pense o que quiser, mas isso aqui é o diabo parindo o LGBTQI+. É a maçã que mata a sociedade. É o fruto proibido. É o caos na terra. É a larva do vulcão que abre o filme. É o estar ao lado e segurar a mão do outro que fecha o filme.

É premissa do movimento punk o acaso, você não precisa ser punk para fazer obra punk, basta uma insatisfação político-econômica e uma vontade de fazer. A estética do “faça você mesmo” se mistura com a necessidade juvenil de criticar os sistemas opressores vigentes, os corpos padronizados, os pais conservadores, a economia capitalista, o tédio social e por aí vai. A diferença dos punks para com os demais jovens cineastas que criticam o mundo opressor é que aqui não importa se tem um bom equipamento, um bom ator, um bom cenário, um bom figurino, a mensagem é a estética da ausência. Engana-se aquele que ignora a política e a economia ao assistir, uma vez que “os cineastas difundiram fantasias depravadas, paródias de formas da cultura de massas, glorificando o estilo de vida do marginal, e exibindo filmes de diversos níveis de conteúdo social” (HOBERMAN, 2015).

O próximo tópico nessa investigação é o caos de Nick Zeed (1985) em “Submit to Me”, no qual o sexo se mistura ao terror do sangue. O filme não possui qualquer narrativa clara, e sim um complexo conjunto de reações em ritmo acelerado e montagem desordenada. A trilha sonora reage à montagem, o personagem reage à câmera, a câmera reage ao acontecimento filmado e o espectador reage ao assistir. O cinema punk aqui é reação.

A aparência exagerada, construída a partir das expressões marcadas pelos efeitos de maquiagem e um comportamento fora do “normal”, coloca os personagens em mundo de humor e horror. É a compilação de ações, atos eróticos, masturbações, assassinatos, mutilações, suicídios e performances dos indivíduos que contam o caos do ser social. Não é atoa que ele escolhe usar “destroy” na transição da dança de acasalamento para a mutilação dos corpos. Não te darei uma explicação para isso, mas não esqueça de olhar a diferença da liberdade do corpo antes e depois de destruído, violado e mutilado. Somos e continuamos sendo violados todos os dias, talvez seja sobre isso. Ou talvez não.

Submit to Me” nada mais é, para mim, do que um grito pela liberdade do corpo. As cenas ao mesmo tempo que permitem a liberdade do ser através do erotismo da fêmea capaz de sentir prazer sozinha ao rolar na cama, ao dançar, ao se masturbar e ao matar, colocam o corpo preso que não sucumbe as amarras e que grita “fuck you” mesmo que sem a liberdade de antes. Não existe espaço para a dualidade, mas uma complexa união de dores e prazeres que se forma a partir da experiencia dos corpos em cena. O sexo é prazeroso e transformado em sangue para as duas pessoas que realizam a comunhão. Seria sexo mesmo ou violação? A vingança é clara quando a fêmea esfaqueia a câmera sem hesitar, faca essa que sai do meio de suas pernas. O homem banhado em sangue grita. A mulher na cadeira de força grita. O ser grita. O caos grita. O filme grita. Eu grito.

Vivienne Dick (1978), com “Guerillere Talks”, traz personagens imersos em um tédio profundo manifestado através dos quartos, salas, apartamentos e divagações pela cidade. Os takes longos com poucos planos não apresentam diálogos, mas sim longos monólogos e ações banais do cotidiano que mais se parecem as pequenas reflexões que temos ao longo do dia-a-dia. A saída da vida monótona? Arte.

Os pequenos detalhes que as longas cenas apresentam fazem a pequena diferença na construção. Mesmo que aparentemente desordenada, a montagem conta a história de jovens comuns insatisfeitos com o abandono da sociedade. Poderia dizer que é um documentário, mas tal título carrega tantas limitações que não se aplicam aqui, sendo assim direi que é apenas uma compilação da vida de muitos jovens artistas.

Dick coloca sua personagem sentada na janela e falando “É como se a minha vida toda agora estivesse tentando só falar. Eu só quero falar. Eu quero subir em um palco e falar. Eu quero mostrar fotografias também, mas eu quero que as pessoas se arrisquem e me deem um palco toda vez. Eu quero ser jogada contra uma parede e chorar na frente das pessoas. E ser capaz de falar o que eu penso”. A personagem fotografa. A personagem fala. A personagem segura a lâmpada. No final fica claro a transformação da criança.

O erotismo aqui é implícito em detalhes como o zoom in nas pernas da personagem que se contorce aos poucos na tentativa de confortar e dar pequenos prazeres à buceta (quem tiver buceta vai entender). Personagem essa que levanta uma arma de brinquedo rosa até o rosto após ler uma passagem de um livro e dizer “isso é outro mundo”. E de fato é. Que jovem se sente contemplado na sociedade? Nenhum.

O que acontece é que o corpo punk traz em si a transgressão ao atuar no filme em formas sensoriais projetadas por uma câmera subjetiva que reage ao movimento. O que diferencia o filme do Zeed e o da Dick, para mim, é justamente essa diferença na reflexão do corpo, porque o corpo punk pode passar por atos violentos, ações sexuais transgressivas, excessos de fluidos (de todos os tipos) e nudez, ou o inverso disso, mas partindo do pressuposto de um desconforto no corpo através da figura andrógina performática.

Beautiful People de David Worjnarowicz (1987) é o registro punk mais sincero que assisti até agora. Não que não exista sinceridade nos filmes citados acima, pelo contrário, mas David exibe a coragem de ser. Enquanto os personagens de Anger, Dick e Zeed estão “presos” no caos e na dor, Beautiful People te coloca no momento mais banal do cotidiano do ser: se arrumar para sair. Enquanto fazemos saídas que nos levam a destinos dos mais variados, David coloca um personagem que tem as cores como destino.

A película em preto e branca marca a trajetória de um “homem” que se arruma para sair, enquanto coloca um vestido, se maquia, dança… As cenas em close caminham por cada detalhe do corpo, desde os olhos até as pernas, paralelamente exibe objetos que te contam inúmeras peculiaridades daquele ser. O globo terrestre sendo colocado dentro de uma bolsa, montado em takes curtos, com poucos movimentos de câmera e um corpo que se move mecanicamente constroem um ritmo interessante para a narrativa.

O destino da personagem é o fluído, a água, e a película ganha cores, e a personagem se entrega ao lago, cada vez mais submersa, vestindo vermelho e a trilha sonora gritando caoticamente “tornando-me mulher”. O filme que segue uma narrativa linear, se diferenciando dos outros mencionados aqui, não perde em transgressão ao apresentar um corpo que se constrói, sai às ruas para dar sua cara a tapa e se encontra no final do arco-íris(?)

E tudo isso se resume em plasticidade abstrata que a imagem punk carregada, construindo significações, questões dos seres, ambientes de representação e imagem do real com os mais variados métodos de construção, uma vez que a mensagem é mais importante do que qualquer questão técnica. Ver cinema punk é olhar com foco para as distorções de imagem e som atribuídas aos elementos do real. É na mobilidade, manipulação e precariedade da imagem que se constrói grande parte das significações e sentires desse cinema, para mim. De uma forma geral é interessante ver muitos dos meus problemas distorcidos, assassinados, em um verdadeiro banho de sangue psicodélico. Um eterno ciclo de desejos, o gerar, o crescer, o viver e o morrer.

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