Plano Aberto

Correndo atrás de Si-mesmo: em ‘Joias Brutas’, o indivíduo esbarra no coletivo

Mesmo em menores escalas os irmãos Safdie se organizam no caos, desenham um senso de desgraça iminente com situações que, mesmo impondo consequências implacáveis e imediatas, permitem um vislumbre de glória que parece inalcançável, mas possível. Uma ansiedade tangível em todo seu catálogo, que em “Joias Brutas” (“Uncut Gems”) traz ao primeiro plano um tema presente, mas mais moderado em seus longas anteriores; um aspecto social e comunitário que denota a vida e decisões de cada um de seus personagens. Da Harley de “Amor, Drogas e Nova York” aos homens de porcelana de “Daddy Longlegs” e “Bom Comportamento”, todos representam uma faceta de um cinema interessado em personas em crise, crises de diferentes magnitudes e em distintas vibrações, que contém em si um acúmulo de fissuras, visões do Si-mesmo de Jung que os fazem cair nas mesmas armadilhas de percurso, não importando o destino por mais que imaginem estar a caminho. Vícios que os condenam antes mesmo de terem um momento de autoconsciência que os permita testemunharem os esforços que tomam em busca de uma totalidade, seja em uma paixão platônica ou seja em uma última aposta.

LEIA TAMBÉM: JOIAS BRUTAS | CRÍTICA

O Howard Ratner de Adam Sandler carrega a pedra de opala negra, projetando nela uma força esotérica que quer que se traduza em conquista material. A opala negra é o patuá que, como mágica, vai lhe trazer a redenção. Essa noção junguiana assenta os homens dos Safdie em um mundo pós-capital, os isola numa bolha de idealismo que guia cada tomada de decisão. É a perseguição de um objetivo que não vai ser barrado ou impedido por ninguém ou em detrimento às circunstâncias, suas boas intenções diluídas em morais corroídas. Um efeito empurra-puxa, tal qual um João-Bobo. Homens que vivem à margem de um surto psicótico usando dessa força compulsiva como energia vital em busca de uma individualização que também os leva aos seus respectivos fins.

As imagens que os Safdie capturam para moldar essas figuras ordinárias, mas míticas, os fazem esbarrar em espaços que lhe são familiares, mas perigosos: uma Nova York cansada e escura que não os oferece muito a não ser armadilhas. É a articulação de uma ideia de familiaridade de um espaço que eles vivem e buscam traduzir, onde inventam uma cidade formada por blocos de pessoas em constante movimento e vizinhanças impessoais que rotacionam num tempo dilatado, indecifrável. Essas características poderiam representar um cinema de caráter acadêmico e austero, não fosse o interesse dos Safdie uma aproximação do cinema do corpo, especialmente de figuras icônicas para o cinema independente, como John Cassavettes, aliado a uma embalagem que invoca o caos de comédias rasgadas como as de Howard Hawks, e, obviamente, o conjunto da obra de Adam Sandler, que constrói figuras proletárias e ansiosas que buscam versões ideias de si desde o início de sua filmografia.

É o encontro de sensibilidades que permaneceram distintas, mas análogas; a ebulição do caos imposto a pessoas com cacoetes e códigos morais que as diferem do seu entorno, mesmo que elas não estejam conscientes disso. Nesse diagrama, a imagem precisa do som pra poder expressar uma vitalidade incompleta através de artifícios visuais, criando um universo sonoro que marca tempo e clima com sintetizadores e camadas de ruído, uma cacofonia complementar à cidade que esmaga cada minuto dos personagens que vagam por suas ruas. Não existe um minuto de silêncio que não seja imbuído de significância. Em “Joias”, Howard só vive essa calmaria sonora ao ter duas conversas, uma com sua esposa e outra com o agiota Arno. Duas conversas de relacionamentos já selados, envoltas em um vácuo de silêncio que não faz muito para lhe salvar. Ele não consegue enxergar o que está em sua frente nem despido de distrações. Essa dinâmica imagem-som doma o conflito, o transforma em adorno, deixando espaço para que a lógica cênica seja guiada pelo personagem: o verdadeiro fator humano e real, que transita livre em meio à bagunça estética.

Em “História de Um Casamento”, Noah Baumbach arquiteta uma ideia similar, mas de forma isolada: enquanto Adam Driver procura o que comer na casa da sogra, a balbúrdia ensaiada antes de sua chegada cai por terra em um desenrolar absurdo, algo que não é igualado em nenhum outro momento do filme. Baumbach mantém sua verve à Preston Sturgess presente em outros trabalhos, em um vislumbre de filme oposto ao que acabou produzindo, um filme em que seus protagonistas reagem em tempo real à desordem. Ele escolhe por pontuar um filme sobre relações que se dobram às instituições burocráticas com um momento de fluxo pastelão, de pura liberdade. “História de Um Casamento” e “Joias Brutas” são apenas dois exemplos recentes de cooptação dessa tradição cômica deixada de lado por boa parte da produção independente do início do século, mas é em “Joias” que esse aspecto se potencializa, toma forma, e indica um futuro para um cinema que tem tido dificuldade em conciliar o formalismo ao imediatismo da experiência cinematográfica atual. “Joias” ressignifica as comédias de farsa da era de ouro e o realismo dos anos 70, remodela gêneros, dá às comédias VHS a urgência que elas precisam para sobreviver em 2020. A obra adapta o clássico aos tempos de métricas de visualização. Algo para a molecada.

Situando o filme no período do Pessach, os Safdie apontam diretamente pra uma ideia de renovação e reparação, tal qual a Páscoa Cristã. Porém, diferentemente dos dogmas cristãos, a reparação judaica é algo a se enfrentar em vida, não em um espaço além-espiritual. Decisões e consequências tem impactos físicos no presente imediato, fazem Howard depender somente de si para a salvação, o que entra em conflito com o aspecto coletivo da celebração que lembra que a comunidade reina perante o indivíduo. Ancorando o tempo do filme em um acontecimento específico do calendário judeu, alça a temática trabalhada pelos Safdie ao mesmo patamar que eles exploram na sua ideia de cidade: personagens que transitam como ratos em um labirinto, se rebatendo em paredes e obstáculos, disparando incontrolavelmente a um destino que eles pensam saber exatamente tudo sobre. Tentativas de agradar e trapacear o divino, sem sucesso. É como se Ivo Holanda traduzisse todo o seu ato em uma ideia visual ou metafísica: o homem que desafia seu entorno pelo entretenimento, mas que acaba levando uma surra ao final, uma perseguição por algo abstrato, a risada, que esbarra nas ratoeiras e pontapés que o mundo lhes apresenta. Acabado, abatido, mas com um sorriso no rosto e pronto para o próximo golpe. O próximo vai funcionar, tem que funcionar.

Na infância, nunca fui um atento ao cinema zebra que Adam Sandler produz. Tinha em Jim Carrey a figura cômica que guiava um ideal de homem que encarava seus obstáculos com a esperança de que a validação viria pela perspectiva de alguém; que por mais inseguro, teria seu momento de glória imposto por sua personalidade, por traços específicos que acabariam por projetar uma confiança que, mesmo inexistente, teria elementos verossímeis o suficiente para causar reações elusivas, de que há algo além da superfície excêntrica a ser descoberta. Ace Ventura (do filme homônimo) e Stanley Ipkiss (de “O Máskara”) são avatares de arquétipos clássicos masculinos: o detetive e o bobo da corte. Acenam para um ideal reconhecível ao mesmo tempo que seguem cartilhas de ação que os reafirmam como figuras de leitura simples.

Especialmente na sua produção dos anos 90, Sandler priorizava um tipo de azarão que rejeitava seu futuro, reagia com raiva ao que o acaso parecia lhe proporcionar. Sendo medíocre em seu esporte ou caindo em um submundo burguês que não lhe parecia natural, se sobressai uma ideia de Si, que é constantemente questionada pela atmosfera que obrigatoriamente é oposta às expectativas, sociais ou emocionais. Paul Thomas Anderson reconhece essa tendência em “Embriagado de Amor”, criando uma tradição canônica que Adam Sandler tenta replicar de forma cíclica em sua carreira: em meio a filmes de grande escala que o vêem transportando personagens de maneirismos extremos a locações confortáveis e apaziguadoras, há ao retorno a ideias primais de um homem que busca por uma aceitação intimista, a ira contra o próprio indivíduo que precisa ser redimida via suas relações humanas.

Casando esse padrão estilístico a uma cristalização de ideia clara de um cinema futuro possível, que os Safdies contornam desde seus curtas, “Joias Brutas” representa a idealização de um conceito cinematográfico mas, também, a desconstrução da figura de homem definido pela sua própria idealização. Adam Sandler desarma antipatia, nos faz torcer por alguém de conduta detestável e irritante. Seu Howard é asqueroso e mesquinho, um desserviço a sua comunidade. Em seu empenho por ser mais, em tentar alcançar uma glória material que acaba por significar um valor místico, ele ilustra uma ideia cada vez mais contemporânea de masculinidade e subserviência ao capital.

Fatores raciais e comunitários da diáspora judaica na América do Norte são variáveis que ativamente agem nas ações dos personagens dos irmãos Safdie, em especial no seu Howie Bling. Muito pode ser dito (talvez por alguém que estude o fenômeno) sobre a busca por superação e dominância em ambientes desfavoráveis a sua existência. Algo examinado por cineastas como o próprio Cassavettes ou Robert Altman nos anos 70, ou ainda melhor, e com esmero excêntrico, por Elaine May. Todos os homens da filmografia de May são expoentes desse grupo que pertence a um recorte muito específico de vivência, tanto étnica quanto metodológica, uma metodologia de sobrevivência. Os titulares projetos-de-mafiosos em “Mikey and Nicky” (1976), habitam suas existências com um cansaço e paranoia que os tornaria insignificantes nas mãos de uma cineasta menor que, com May, tem uma organização de mundo familiar ao cinema centrada em torno de duas figuras que tomam atitudes patéticas em prol de um propósito nobre, mesmo que apenas em teoria.

Os fins não justificam os meios e no recorte de dois criminosos que veem o medo cobrar seu preço pelas vidas que têm vivido, ter o maior ponto de harmonia materializado na amizade que os une e os sustenta nesse ambiente, surge uma acusação latente dos homens dessa estirpe, herança de um cinema em que a arrogância e a incapacidade de conciliação – antes virtudes – representam a corrosão do caráter. Representam a crença que a redenção pode ser alcançada não pela conexão humana, mas pelo tangível ou visível, um símbolo material que valide qualquer esforço. Algo difícil de se conceber quando a ideia que temos sobre nós mesmos é mais bem delineada que a do mundo externo. Assim como May, que escalou John Cassavettes no mesmo ano em que ele realiza “A Morte de um Bookmaker Chinês” (um filme que mantém muitas relações paralelas a “Joias Brutas”), os Safdie vêm construindo uma filmografia interessada em personagens que buscam por uma conexão humana e, talvez, esotérica, tomando subterfúgios concretos em diferentes campos: social, financeiro, pessoal, espiritual.

Assim como May, os Safdie não desdenham de seus homens à beira de um ataque de nervos, mas escracham como eles escolhem se conduzir em seus grupos, de suas armaduras criadas para amortecer as dores que sentem por usarem da auto-importância como munição. Noção que, ao fim, é nula. Do caos que os envolve, sobra o desejo de conquistar, da sensação de tudo acontecer simultaneamente sobra o vácuo do querer. Nesse aspecto, Jung poderia muito bem estar certo. O ego nada mais é que um fragmento da existência, do Si-mesmo, que implacavelmente vai buscar sua completude, seguindo o caminho de uma idealização impossível de ser alcançada.

Sair da versão mobile