Cowboy Bebop se posiciona em um momento muito específico da história. Lançado em 1998, o desenho abraça todo o zeitgeist da proximidade da virada do milênio. Situado em um período essencialmente transitório, o anime tem como uma de suas principais temáticas a dialética entre o velho e o novo. Fruto de um mundo de incertezas a respeito do futuro, Cowboy Bebop reflete este sentimento em sua narrativa que conta a história de uma tripulação de caçadores de recompensas que vagam sem rumo pelo espaço. Sem grandes ambições ou propósito para estarem ali, os membros da espaçonave Bebop vão de recompensa em recompensa apenas para angariar algum dinheiro e não morrer de fome.
Jet Black é o dono desta nave espacial e um ex-policial que abandonou o serviço para caçar recompensas após a perda de um braço e do sumiço de Alissa, a mulher que ele amava. Seu fiel companheiro é Spike Spiegel, um relaxado e preguiçoso caçador de recompensas que precisou forjar a própria morte para largar o Sindicato do Dragão Vermelho, uma espécie de máfia intergaláctica. No entanto, para viver a vida fora do crime, o cowboy espacial precisou abandonar uma parte de si, Julia, a mulher a quem ele dedicou sua vida. Faye Valentine é a azarada apostadora que contou com a sorte para sobreviver de um terrível acidente, mas que perdeu sua memória após acordar dezenas de anos depois de seu congelamento. Edward é a última parte desta tripulação e uma jovem hacker que vivia órfã de seus pais até embarcar na nave Bebop.
Após alguns episódios da animação, é possível ter a sensação de estagnação. Este sentimento é uma das principais forças do anime, pois ele está diretamente ligado à história de cada um dos protagonistas. Embora não haja motivos para Spike, Jet, Faye e Ed conviverem na espaçonave, uma coisa conecta estes personagens: todos eles possuem um passado mal resolvido. Portanto, sentimos esta estagnação por causa da recusa destes protagonistas em enfrentar seus respectivos fantasmas. Além disso, a prisão emocional que estes personagens se impõem os impedem de vislumbrar um futuro, vivendo apenas o presente assombrado pelo que já passou. Desta forma, o espaço sideral, ambientação majoritária de Cowboy Bebop, se assemelha ao deserto do faroeste: um ambiente inóspito capaz de trazer reflexões em meio a solidão e a desolação.
Falando no gênero do faroeste, este estilo se adere à dicotomia principal de Cowboy Bebop. O anime é um western espacial, que mistura o gênero clássico do faroeste hollywoodiano à ficção científica contemporânea. Há sempre um diálogo entre antigo e moderno dentro de Cowboy Bebop e não é à toa que a animação busque resgatar convenções clássicas como um universo regido pela moral do faroeste ou conter elementos do cinema noir tendo Faye como uma Femme fatale e Jet um ex-detetive apenas para que estas convenções dialoguem com as naves espaciais da ficção científica e as artes marciais tiradas dos filmes de exploitation. A quintessência do anime reside no meio termo entre o que já foi e o que está por vir.
Para flutuar nesta profusão de gêneros e referências, o anime adota um caráter episódico, ou seja, cada capítulo se fecha em si próprio, não havendo continuidade entre eles. A estrutura antológica de Cowboy Bebop reforça o desnorteamento de seus personagens, pois, ao iniciar o episódio seguinte, tudo que ocorrera no capítulo anterior já não importa mais, as situações e personagens encontrados ficaram para trás. Por causa desta estrutura, é possível perceber duas coisas: a primeira diz respeito a um caráter onírico presente na narrativa, onde as situações se esvaem como o acordar de um sonho e esquecê-lo, enquanto a segunda demonstra o quão autocentrados são os protagonistas, que estão presos demais aos próprios passados, ao ponto de não se importarem ou simplesmente esquecerem aqueles que cruzaram seus caminhos.
Cowboy Bebop, portanto, é um anime determinista. A obra de Shinichiro Watanabe acredita que o passado molda as pessoas e que nós carregamos aquilo que fizemos e a única forma de encontrar a libertação pessoal é o encarando. Ainda no campo filosófico, Bebop abraça também questões de niilismo existencial. A tripulação da nave busca um propósito para viver, cada um a sua maneira, mas nunca parecem serem capazes de o encontrar. Isso decorre da estagnação destas personagens. Shinichiro Watanabe deixa claro que o passado precisa ser enfrentado e deixado para trás, que é necessário se olhar para frente, acordar do sonho.
O último diálogo entre Faye e Spike simboliza bem a mensagem passada pelo diretor. Enquanto Faye percebe a necessidade de seguir em frente, Spike se recusa a perceber isso e prefere viver no passado. Faye é a personagem que mais enfrenta desilusões ao longo da animação: ela descobre que seu amor era um aproveitador, acorda décadas depois do seu tempo e percebe que tudo que ela conhecia ficou para trás e a única esperança que ela tinha de reviver sua memória simplesmente não existe mais. Ela não tem mais muletas para se apoiar e seu único destino é viver e encarar o futuro, sem medo. Ao realizar isto, Faye percebe a importância de seus companheiros de tripulação e compreende como eles se complementam. Por outro lado, Spike, ao forjar sua morte, vive uma vida de mentira a espera do encontro de sua vida de verdade ao lado de Julia. À medida que o tempo passa, a linha entre realidade e sonho fica cada vez mais nebulosa para ele. Desta forma, somente revivendo seu passado ele é capaz de saber se ele de fato está vivo ou apenas sobrevivendo. Por isso que Spike não se importa quando Faye demonstra que ele já tem tudo que precisa e por isso também que ela se frustra ao vê-lo partir.
Por mais paradoxal que este diálogo soe, Cowboy Bebop converge em uma coisa: a necessidade de se seguir em frente. Faye compreende isso ao ver todas suas crenças desmoronarem diante de seus olhos e Spike precisa tirar a prova disso retornando para o que o paralisava. Talvez a narrativa que melhor simbolize isso seja a de Ed, que reencontra seu pai perdido e possui a escolha de viver com ele ou seguir na Bebop. Precisamos fazer escolhas, precisamos encarar o futuro e olhar para frente.
Ao final da explosão de referências e gêneros do anime, lemos um card em uma tela preta com os dizeres: “você vai carregar este fardo”. Da mesma forma que os personagens da animação precisaram lidar com seus fardos individuais, Shinichiro Watanabe nos relembra que todos nós possuímos passados e questões a resolver. O fardo de Cowboy Bebop é nos relembrar que precisamos olhar para nós, seguir em frente e nos libertar do que já foi, enfrentando-o. Desta maneira, o formato antológico da animação nos remete mesmo a um sonho, um estado de letargia que ao final nos obriga a acordar e enxergar o mundo que temos a nossa frente. Se no final do milênio experimentamos um período transitório, Cowboy Bebop se encarregou de criar personagens transitórios (que precisavam superar o próprio passado), em um mundo transitório (o contexto do anime) dentro de uma animação transitória (o sonho que precisamos acordar).