Plano Aberto

1917

O texto a seguir contém spoilers de “1917”.

A defesa do plano-sequência feita por André Bazin estava ligada à busca por um cinema da transparência, marcado pela contiguidade entre realidade e narrativa fílmica. Em “1917”, de Sam Mendes, esse recurso é usado, a princípio, para acentuar o realismo da história contada, promover um mergulho do espectador na experiência intensa e extrema da Primeira Guerra Mundial. Coerente com a proposta de Bazin, portanto. Evitando o corte, o cineasta se aproximaria do real, já que a vida é percebida de forma contínua, ao invés de fragmentada em vários pequenos pedaços depois unidos pela montagem. No entanto, o efeito alcançado por Mendes e pelo diretor de fotografia Roger Deakins nem sempre é esse desejado.

“1917” está inserido num fenômeno do cinema contemporâneo caracterizado pela ideia de câmera virtuosa. Filmes recentes como “Birdman” (2014) e “O Regresso” (2015), de Alejandro González Iñarritu, “Gravidade” (2013) e “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón, e “La La Land” (2016), de Damien Chazelle, todos celebrados no Oscar, são exemplares nesse sentido. Neles, as câmeras bailam num misto de elegância e expressividade pelos espaços da encenação, os planos se prolongam, as imagens obtidas impressionam pela plasticidade. Não à toa, Emmanuel Lubezki, diretor de fotografia de três desses cinco filmes, se tornou tão conhecido entre cinéfilos, sendo frequentemente lembrado com peso igual aos diretores com os quais trabalha. Deakins, também tratado como criador de belas e sofisticadas composições visuais, passa por um processo semelhante de popularização do seu nome.

O ponto aqui é que, no caso específico de “1917”, esse excesso de virtuosismo atrapalha. Especialmente no terço final do filme, quando o protagonista Schofield (George MacKay) passa a sobreviver a situações grandiloquentes e a câmera de Mendes e Deakins é levada a acompanhá-lo, sempre produzindo a ilusão (cada vez menos verossímil) de ausência de cortes. Na verdade, o movimento é o oposto: esse jovem soldado britânico só é colocado em situações espetacularmente desesperadoras e já não tão críveis – como a fuga noturna num vilarejo francês em ruínas, iluminado apenas pelas chamas decorrentes de bombardeios, ou o salto numa corredeira – para que a câmera possa se exibir.

Não há, portanto, realismo possível em “1917”, por mais que a produção se esforce na reconstituição do horror das trincheiras, abandonando qualquer noção que considere a Primeira Guerra como “a última guerra entre cavalheiros”, como defendia Jean Renoir em “A Grande Ilusão” (1937). A transparência vislumbrada por Bazin no uso do plano-sequência, produtora do que ele chama de lucro de realismo, se perde diante de uma câmera sempre visível, que chama atenção para si. No fim das contas, o filme é mais sobre ela que sobre a guerra.

E esse é um caso que se difere do de “Birdman”, filme também construído a partir da ilusão de um único plano-sequência, já que Iñarritu não almeja o realismo, mas a farsa e a metalinguagem. O problema de “1917” é que Sam Mendes desejava abordar frontalmente a brutalidade desse conflito definidor do século XX. As imagens de destruição e morte que povoam a primeira parte da narrativa chegam a evocar a atmosfera de filme de terror da obra-prima “Vá e Veja” (1985), de Elem Klimov. Mas a opção realmente feita por Mendes e Deakins é pelo espetáculo puro e simples, por um cinema de ação desenfreada com verniz de nobreza. Acaba não sendo nem um grande exemplar do gênero ação, nem um filme denso sobre a Primeira Guerra.

“1917” não é um desastre completo, no entanto. A primeira parte, menos acelerada e mais dedicada a apresentar o cenário desolador das trincheiras, funciona muito bem. Em boa medida também pela presença de Dean-Charles Chapman, num personagem carismático que ensaia dar ao filme alguma força emocional. Mas ele morre na metade, numa sequência, aliás, comovente, talvez a única que funcione nesse sentido em “1917”.

Sair da versão mobile