Plano Aberto

1964: O Brasil Entre Armas e Livros

Produção do canal ultraconservador “Brasil Paralelo”, o documentário “1964: O Brasil Entre Armas e Livros”, de Filipe Valerim e Lucas Ferrugem, parte do pressuposto de que há uma versão corrente mitificada da ditadura militar e da luta contra ela empreendida por movimentos guerrilheiros ao longo das décadas de 1960 e 1970. Tal mito, disseminado na historiografia, na imprensa e em produções artísticas, passaria principalmente pela leitura puramente negativa do golpe de 1964 – que na verdade seria um contragolpe preventivo, já que João Goulart e os comunistas de fato representariam uma ameaça à democracia naquele contexto – e pela exaltação das esquerdas revolucionárias como agentes da luta pelo retorno da democracia, quando, na verdade, elas estariam a serviço de Moscou e Havana, visando a construção de uma ditadura do proletariado no Brasil.

Para se contrapor a essa mitificação, os realizadores do filme simplesmente invertem a chave. Se os guerrilheiros que enfrentaram a ditadura militar não eram exatamente democratas, eles só poderiam ser bandidos, terroristas e sanguinários. Se o golpe e a ditadura tinham relações mais complexas com a sociedade do que as memórias das esquerdas admitem, não se resumindo a demônios a serem exorcizados, alguém deveria exercer esse papel – os comunistas, claro, referidos como seguidores do “Deus Lenin” e dos “papas vermelhos” Trotsky e Stalin, disseminadores de um “reino de terror sobre a Terra”. O maniqueísmo é a regra em “1964: O Brasil Entre Armas e Livros”.

O curioso é que a historiografia da ditadura militar, pintada no filme como submetida aos interesses do “marxismo cultural”, já avançou muito nas ultimas décadas em relação à pura repetição das memórias dos que lutaram contra o regime. As questões da participação civil no golpe de 1964 e do apoio de consideráveis setores da população à derrubada de João Goulart e ao regime até meados da década de 1970, tratadas em “1964: O Brasil Entre Armas e Livros” como novidades bombásticas, já vêm sendo discutidas pelos historiadores Daniel Aarão Reis e Janaína Martins Cordeiro há algum tempo. Vale, aliás, recomendar algumas leituras nesse sentido: “Ditadura e democracia no Brasil”, de Aarão Reis, “Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil” e “A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento”, ambos de Cordeiro. Já as matrizes ideológicas da luta armada e sua vinculação com Cuba, por exemplo, são discutidas por Aarão Reis no livro anteriormente citado e em “A Revolução faltou ao encontro” e por Denise Rollemberg em “O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro”. Esse último tópico, aliás, nunca deixou de ser verbalizado por ex-guerrilheiros. No documentário “Hércules 56” (2006), por exemplo, personagens políticos da época como José Dirceu e Vladimir Palmeira falam dele abertamente.

Mas “1964: O Brasil Entre Armas e Livros” não parece interessado em estudos sérios, complexos, nuançados. Informações e análises históricas do tipo são ou instrumentalizadas em prol de um discurso anticomunista caricatural ou completamente ignoradas. O maniqueísmo prossegue: ao apresentar a descoberta de documentos que revelam a atuação de agentes secretos tchecoslovacos no Brasil antes de 1964, o filme tem que, necessariamente, negar a tese inversa, de que o golpe contou com apoio concreto dos Estados Unidos. Há não só um livro inteiro do historiador Carlos Fico sobre o assunto (“O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo”), baseado em exaustiva pesquisa em arquivos norte-americanos, como um documentário (“O Dia que Durou 21 Anos”, de 2012) que se dedica a apresentar a pesquisa de Fico para um público mais amplo. O filme do “Brasil Paralelo”, no entanto, prefere permanecer preso na retórica da guerra fria, demonizando o comunismo enquanto exalta os Estados Unidos como bastiões da liberdade e da democracia.

Esse histrionismo – que, aliás, se manifesta na própria estética do documentário, com sua trilha sonora onipresente e exageradamente expressiva – não ajuda muito na compreensão do passado. Pelo contrário, sujeita esse passado às lutas políticas do presente. É esse, afinal, o sentido e o propósito de “1964: O Brasil Entre Armas e Livros”: servir ao negacionismo histórico da nova direita brasileira, se prestando a defender não só um golpe de Estado, mas a censura às artes e à imprensa (alguns entrevistados reclamam da falta de profissionalismo dos censores do regime, que se preocuparam com questões morais enquanto o “marxismo cultural” gramsciano grassava solto nas universidades, nos filmes, nas músicas, na imprensa) e a cassação de mandatos democraticamente constituídos (uma “intervenção cirúrgica” necessária para purgar um organismo doente, diz o “historiador” Rafael Nogueira). Ao final, em meio a ataques à Constituição de 1988, aparece o alvo esperado: o PT e suas principais lideranças, símbolos de todo o mal, frutos de um trabalho de limpeza que restou incompleto por incompetência da ditadura militar.

“1964: O Brasil Entre Armas e Livros” acaba se assemelhando tanto a propagandas anticomunistas que circulam no Brasil desde o imediato pós-Revolução Russa – e aqui vai mais uma indicação bibliográfica: o livro “Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil, 1917-1964”, de Rodrigo Patto Sá Motta, outro historiador sério e estudioso do período do golpe de 1964 –, quanto aos mais abjetos representantes do cinema nazista. “O Eterno Judeu” (1940) vem de imediato à mente. Mas a nova direita brasileira rechaça qualquer aproximação com o regime hitlerista, empurrando o nazismo, a despeito dos fatos, para a esquerda. Seria patético, se essas pessoas não estivessem, hoje, no poder, tentando, à base de mentiras e distorções, reescrever a história do Brasil ao seu bel prazer.

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