Dizer que “7 Prisioneiros” é uma fábula do presente para contar sobre o passado escravagista do Brasil seria uma mentira, uma vez que é do conhecimento geral que essas relações ainda persistem clandestinamente, disfarçadas enquanto ‘empregos’ cujos salários irrisórios não correspondem às muitas horas (extras e não pagas) de trabalhos braçais em condições subumanas. Contextualizada neste mundo, a história do filme acompanha um jovem que sai da pobreza material da vida na ‘roça’ para conquistar o sonho de ir para a cidade grande, fazer dinheiro e voltar com ele para sustentar sua família. Isso tudo é possível porque um homem promete a ele e mais 3 homens do campo um emprego em um antigo ferro-velho.
Obviamente, o sonho rapidamente se transforma em pesadelo e não tarda muito para aqueles homens do campo sofrerem todo tipo de degradação moral e física, tratados como animais. Que isso acontece na vida real não há dúvidas, porém já passou da hora de questionar a ética nessa tendência realista do Cinema (não só brasileiro, mas muito explorada por alguns filmes nossos) de expor a “realidade crua” e enquadrar todo o sofrimento humano de seus personagens — o que normalmente é acompanhado por uma câmera na mão. Ora, se toda escolha estética é moral, não dá para dizer que um diretor que decide denunciar algum acontecimento cruel do mundo real e reproduz (encena) explicitamente em seus planos não está paradoxalmente reforçando aquilo que ele quer denunciar?
Inclusive, essa abundância de imagens de sofrimento se tornam piores ainda quando se entende que todo o masoquismo do primeiro terço no filme não existe somente para “chocar” (o que já seria ruim por si só), mas faz parte de um propósito narrativo maior ainda. Afinal, isso tudo serve para suavizar e tornar compreensível a escolha de Mateus em se filiar ao seu próprio “dono”, criando o falso maniqueísmo de que não havia outra escolha para ele senão a de entrar na “roda de poder”, que é basicamente a principal temática de todo o filme. Portanto, o que se acompanha na narrativa é o abandono de Mateus aos seus próprios valores (éticos, de classe, de raça) em prol de sua sobrevivência individual, através de um pacto conciliador com Luca, o equivalente a um senhor de engenho moderno. Assim, o ex-escravo vai conquistando gradualmente sua saída da “senzala” para a “Casa Grande”, até se tornar um novo Capitão do Mato (literalmente, já que sua função envolve escolher novos escravos e capturar os já existentes).
A partir de sua segunda metade, a narrativa toma contornos igualmente deploráveis. Incomoda profundamente como o principal interesse de “7 Prisioneiros” parece ser a gradual desconstrução e complexificação do até então maniqueísta e torturador Luca, buscando uma simpatização do espectador ou no mínimo uma compreensão diante de suas ações anteriores no filme. Afinal, descobre-se que aquele torturador era na verdade um “ex-escravo” que também passou pela mesma trajetória de Mateus, o que significa que na verdade aquele homem não é um grande vilão, mas “pobre fruto” deste sistema cíclico do qual não há saída, a não ser se conformar que é preciso seguir os mesmos passos cruéis para sobreviver na selva. Ou seja, o filme quer fazer com que o espectador compreenda a passagem de bastão de Luca para Mateus e como o mais pequeno poder é capaz de corromper o homem. O que são aquelas cenas tão alegres com Luca olhando o futebol dos seus escravos se divertindo, como se todos fossem uma grande família, e a cena dele no bar com Mateus quase como uma dinâmica de pai e filho? A mensagem é: “Olha, ele é gente como a gente e tem até mãe”? Não menos importante, escalar o astro e de fácil simpatização Rodrigo Santoro para o papel do torturador escravagista indica muito sobre quem é o foco principal do filme.
Tirar a responsabilidade do guarda da esquina e culpar o sempre o sistema invisível (a maior camada de matrioska que se atinge é o político que apadrinhou Luca, mas ele certamente não é o último da escala) se torna mero inconformismo e conciliação de classes. O grande vilão aqui é a cidade enquanto uma entidade autônoma e ninguém é exatamente culpado por seus atos, pois o poder é uma entidade própria que corrompe. Pelo menos nesse sentido, diferente de todo o resto do filme, tão genérico em sua direção, existe uma única sequência que me chamou atenção positivamente, que é quando Luca aponta para o eletricista mexendo na fiação na rua e ele conecta o trabalho escravo com o fornecimento de energia para toda cidade. Logo em seguida, vem uma longa sequência de montagem que passeia por vários cabos espalhados na rua e depois vai se continuando pelos prédios da cidade, de modo que permite acumular a ideia anterior de maneira muito clara e implícita: toda aquela cidade e seu funcionamento são mantidos pelo trabalho escravo que acontece no subterrâneo da cidade.
Ao fim, quando o protagonista opta por seguir o caminho do poder, seu amigo abandonado por ele lhe marca com o ferrete moderno (cigarro) para deixar o lembrete de que sua liberdade é falsa e sua escolha não é exatamente uma escolha, sendo ele para sempre escravo do sistema. E assim, a roda de poder continua girando e as peças são trocadas, mas sem nada se renovar estruturalmente. E o filme, assim como a estrutura a qual ele mesmo critica, roda ciclicamente até não chegar a lugar nenhum também.