Hong Sang-soo é um investigador da essência humana. Sua câmera, quase sempre estática e que mantém certa distancia de seus personagens, funciona como seu olhar. Diante dela, não atores, mas pessoas. Artistas que exprimem tanta verdade em suas interpretações que mais parecem pessoas vivendo suas rotinas, enquanto lá está o cineasta sul-coreano, registrando a vida como ela é e nos fazendo ver a nós mesmos na grande tela. Como bom artista, Sang-soo busca ir além, e com uma sutileza quase angelical, nos mostra como, a todo momento, nos transformamos. Ao fim de uma conversa, nunca somos os mesmo do início do diálogo.
A Câmera de Claire, novo filme do cineasta, é sua nova forma de nos jogar em uma viagem de autoconhecimento. Na trama, a professora, poeta e fotógrafa Claire (vivida brilhantemente por Isabelle Huppert, uma das melhores atrizes do século) circula pelas ruas durante o Festival de Cannes e faz amizade com alguns sul-coreanos que estão de passagem pela cidade por motivos profissionais. Em seus encontros, Claire funciona como um conduíte, que fará os outros personagens se revelarem e refletirem e, enquanto isso, lá estará ela, registrando as diferentes nuances de cada um.
O já conhecido realismo de Sang-soo se faz presente mais uma vez. Desde os diálogos às atuações, boa parte das conversas é essencialmente trivial, mas, conforme as pessoas envolvidas encontram conforto, um elemento aqui e outro ali nos ajudam a montar o quebra-cabeça que é cada personagem. Para isso, A Câmera de Claire faz uso de uma montagem sem linearidade, que traz excertos dos encontros entre as pessoas de forma que notamos como um influencia o outro. Em uma das conversas, por exemplo, Claire se apresenta como professora, mas diz que escreve poesia como passatempo. Um personagem, então, diz que isso faz dela uma artista. Em outro momento, vemos Claire se apresentando de forma diferente, como professora e artista. Essa sequência de acontecimentos funciona como uma bula para a obra, mostrando como cada evento molda e transforma os envolvidos.
Sang-soo faz uso de metalinguagem de maneira exemplar. Em um dos diálogos, é dito que o único jeito de transformar é observar atentamente o objeto em seu estado atual, o que explica a protagonista de Huppert tirar fotos dos amigos. Mas a francesa não as guarda, e sim deixa que os próprios fotografados fiquem com os registros. Com isso, Sang-soo, além de plantar na mente dos personagens a ideia de eterna mudança (o que faz com que nenhum personagem termine o longa da mesma forma que começa), faz um exercício com seu público, transformando a câmera de Claire em uma alegoria para o cinema e sua capacidade de nos transformar.
O cinema do coreano, assim como a máquina fotográfica do filme, é uma tentativa de arrancar nossa verdade e registrar nossas transformações. Aliás, a sutileza é tamanha que “arrancar” soa até injusto com o que a obra pratica. Com A Câmera de Claire, Sang-soo nos revela nossa própria verdade, e não há nenhuma cerimônia em deixar isso explícito, mesmo que a obra calque seu desenvolvimento narrativo na sutileza. Há até um flash branco que cobre a tela por uma fração de segundo, como se a protagonista nos fotografasse, mostrando como, com A Câmera de Claire, o cineasta busca transcender a tela e levar o espectador a entender suas próprias mutações.
O flash mencionado é uma das formas que Sang-soo encontra para nos retirar a diégese da obra e lembrar, em variados momentos e de variadas formas, que estamos assistindo a um filme. Além dele, o zoom também se faz presente, ganhando até mais funções. Para criar o sentimento de enclausuramento dos personagens, A Câmera de Claire poderia utilizar uma variação de planos e até movimentos de câmera para aproximar o enquadramento dos personagens e obter o mesmo efeito. Ao escolher o zoom, Sang-soo nos martela o uso de sua câmera, que faz uma conexão entre sua ação de filmar o filme e a ação de Claire de fotografar as pessoas.
A Câmera de Claire é a sétima arte em sua melhor forma. Uma obra que ultrapassa o telão e o projetor, e se revela uma forma do artista buscar compreender a si mesmo e suas mudanças. É o tipo de filme que cria no público que o assiste o mesmo desejo de buscar entender e aceitar suas transformações. É a forma fílmica da ideia de Heráclito de que um homem jamais entra duas vezes no mesmo rio.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2017.