Perto do fim de A Caverna dos Sonhos Esquecidos, um antropologista explica os prováveis motivos que fizeram com que nossos antepassados de 30 mil anos escolhessem a pintura rupestre para se expressar, ao invés de algum tipo de comunicação escrita ou verbal. Ora, imagens são uma forma mais eficiente de se comunicar universalmente e passar adiante uma mensagem ou o sentimento, seja para povos de línguas e costumes espacialmente diferentes ou atemporalmente para seres humanos de outras eras. O que é o Cinema — apesar da incorporação do elemento falado — senão uma extensão de um processo artístico imagético que começou no período paleolítico? Aliás, o que uma ida a uma sessão de Cinema senão uma entrada metafórica em caverna escura rumo ao desconhecido, deparando-se com sonhos esquecidos de outras pessoas que se revelam como imagens misteriosas de outros tempos e culturas?
Qualquer meio artístico, seja a pintura rupestre ou o Cinema, só existem dentro de um contexto comunicativo a partir da dialética artista-espectador. Trata-se da continuação do pensamento do filósofo George Barkeley, que diz que “os objetos do sentido que só existem quando são percebidos”. Neste sentido, a existência do filme funciona como um prolongamento daquilo que ele mesmo estuda. Enquanto a existência concreta das pinturas rupestres preservou o passado e possibilitou uma comunicação com o presente dentro de um intervalo de 30 mil anos, A Caverna dos Sonhos Esquecidos é uma forma de imortalizar esses desenhos adiante e fazer com que eles sejam sentidos, através das imagens do Cinema, já que apenas um número privilegiadíssimo de pessoas possui acesso a eles pessoalmente.
Ao mesmo tempo, se somos otimistas quanto ao futuro da humanidade e do Cinema, o próprio filme pode servir para que gerações daqui a centenas de anos estudem como os homens dos anos 2010 estudaram essas pinturas. Portanto, A Caverna dos Sonhos Esquecidos não possui como objeto de análise apenas a caverna de Chauvet com suas pinturas rupestres, mas também os arqueólogos e outros estudiosos da contemporaneidade que estudam e interpretam essas expressões artísticas no presente. Por se tratar de uma obra que quebra uma barreira temporal de 30 mil anos ao realizar uma conexão espiritual entre o passado e o presente, o filme existe como um bug que gera uma sobreposição de dois tempos diferentes na mesma imagem.
Em um diálogo com um dos arqueólogos, Herzog e ele chegam à conclusão de que não é possível saber a história exata por trás daquelas pinturas, vestígios e ossos deixados ali. Através das imagens capturadas e dos depoimentos colhidos, no máximo se pode chegar a uma tentativa incompleta de compreender o que se vê, mas jamais resgatar com precisão o passado. Neste sentido, duas cenas chamam a atenção: aquela em que um homem toca uma flauta paleolítica, emulando como os antepassados provavelmente faziam, mas tocando o hino dos Estados Unidos, e a outra em que um homem arremessa uma lança em direção ao vazio do presente, simulando como se estivesse jogando em um animal. O que se vê é uma tentativa claramente anacrônica de promover um encontro estranhíssimo entre dois tempos diferentes. De mesmo modo, ainda que não tenha sido possível assistir ao filme em 3D, é possível identificar que naquela sequência em que se adentra na reconstrução digital da caverna há a mesma intenção de produzir este efeito anacrônico produzido anteriormente: ver o passado a partir de imagens imaginárias do presente. Igualmente, uma possível noção de profundidade gerada pela técnica moderna nas pinturas na parede também funcionaria nessa lógica ao conferir “textura” ao passado a partir das imagens no presente, promovendo o encontro entre a técnica moderna do Cinema e a pintura rupestre — aliás, vale pontuar a ironia do paralelismo irônico que é a minha especulação sobre o uso do 3D no filme assim como os arqueólogos especulam sobre o passado daquelas obras de arte.
Logo, a grande ideia da mise-en-scène de Herzog parece ser jogar com este vácuo gerado pela incomunicabilidade entre passado e presente. Ou seja, em cada plano capturado no presente existe um certa fantasmagoria do passado, mas que ao mesmo tempo não nos deixa esquecer que estamos em um presente. Estamos vendo pinturas de 30 mil anos atrás, mas através de um filme, uma técnica moderna. Estamos vendo vestígios do passado, mas sempre a partir de uma interpretação de homens do presente. Então, A Caverna dos Sonhos Perdidos existe muito mais em um espaço espiritual do que físico e esta talvez seja a grande façanha herzogiana: filmar o visível para especular sobre o invisível, permitindo com que se sonhe com o passado enquanto se está acordado no presente. O Cinema, de maneira geral, também é sobre isso: sonhar acordado.