A intencionalidade da dupla de diretores Mozart Freire e Virgínia Pinho com A Colônia se faz muito clara desde o seu título até a sua própria execução em si. A hanseníase, apesar de ser o aparente epicentro do filme, não é o seu protagonista, pelo menos enquanto doença, o que já é um certo alívio por ele escapar de ser apelativo. Dizer que o foco seria indivíduos com hanseníase também seria uma resposta ainda imprecisa, pois apesar de isso também ser um elemento do documentário, o individualismo e o “estudo de objeto” (entrevistados) também não são o seu foco. Portanto, é a comunidade, como um organismo coletivo, o grande protagonista deste longa-metragem. Isso significa que, em um sentido amplo, ele perpassa desde os indivíduos com hanseníase, mas também abrange a geografia, a política, a arquitetura, os costumes e a rotina do bairro Colônia, no interior do Ceará, estando todos esses elementos ligados entre si. Contudo, nem sempre as intenções se concretizam de maneira bem sucedida no campo fílmico, e é isso que deve ser investigado no texto em questão.
O primeiro elemento intencional de A Colônia que não funciona bem na prática é a tentativa de tentar criar essa ideia do bairro como um organismo vivo a partir de um vai-e-vem entre os seus habitantes a partir de uma montagem que funciona como um quebra-cabeça. A variedade de personagens, neste caso, acaba saindo um próprio tiro pela culatra que, no intervalo de 1h10, parece não dar conta de construir algum material em cima daquela população, enquanto coletividade, e nem criar, a nível individual, conexões entre espectador e documentados, já que a necessidade de mostrar toda a comunidade faz com que o filme fique rapidamente pulando de pessoa em pessoa (ainda que tenha alguns moradores recorrentes, os “protagonistas”) mais rápido do que deveria, em uma montagem ansiosa para ir ao próximo segmento. Tampouco esses segmentos parecem dialogar em si, existindo enquanto planos unitários, de modo que o filme não parece pensar na montagem como um elemento criador de paralelos e choques ao se ordenar enquanto estrutura narrativa. Neste sentido, o único padrão de montagem que se pode perceber é a alternância entre uma cena de atendimento da médica com os pacientes e uma cena do dia-a-dia normal da cidade, como se o filme precisasse quebrar os momentos de aparente naturalidade para sempre lembrar que, ainda assim, aquelas pessoas sofrem de doença e precisam de tratamento.
Uma outra questão de A Colônia é justamente as dúvidas quanto às suas intenções não tão claras de se alternar entre o documentário assumido e uma estranha tentativa de ficcionalizar seus personagens em certos segmentos. Por exemplo, há cenas em que o filme lida com aqueles pessoas enquanto indivíduos do mundo real e até opta por entrevistas diretas, em que olham para a câmera, mas em outros momentos surge a opção por uma encenação do dia-a-dia daquelas pessoas, que deixam de ser indivíduos reais e viram verdadeiros personagens, frutos da ficção, enquanto a câmera se aproxima de suas conversas de bar a partir de uma suposta invisibilidade, já que agora eles fingem que ignoram sua presença.
Esta linha tênue entre o documentário e ficção enquanto estética é uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo e que, como qualquer outra escolha, pode ser bem sucedida ou não, mas aqui parece ser mais um daqueles casos que o desejo excêntrico de direção se sobrepõe ao pensamento do que faz sentido para o seu universo fílmico. É difícil pensar como tal escolha pode ser algo que ajuda na intenção narrativa de investigar aquela colônia, ao invés de criar desvios complexos que só tiram o foco do seu principal.
A direção, a bem da verdade, também não ajuda. A impressão geral do trabalho geral de Mozart Freire e Virgínia Pinho é de que o filme não consegue sair de uma certa burocracia em seu modo de filmar, com uma decupagem que não busca nada em específico, sem o trabalho de qualquer subtexto ou camadas, mas apenas o retrato mais direto daquele bairro e seus habitantes de maneira enquanto um registro mais institucional do que propriamente um trabalho mais artístico que pensa na mise-en-scène enquanto objeto político e reveladora de certas estruturas através da imagem — e nas poucas vezes que há uma intervenção artística, cai no problema da ficcionalização, como já dito. Talvez o grande exemplo disso seja do decepcionante momento em que acompanhamos um passeio pelo antigo prédio em que ficavam os indivíduos com hanseníase, em que, o invés do filme buscar soluções criativas de explorar aquele lugar enquanto imagens, escolhe preguiçosamente fazer um “tour” institucional guiado por uma médica que vai narrando seus significados.
É claro que a própria existência do filme por si só não é algo a ser diminuído, uma vez que já existe algo de milagroso e político no ato de algum cineasta ir a uma população de certa forma invisível, mas é preciso que ele seja mais do que suas intenções. No fim, talvez uma das ideias que fiquem mais bem concretizadas em A Colônia é justamente o modo como ela olha (ou melhor, não olha) para a hanseníase enquanto doença. O retrato, acima de tudo, é o da normalidade, de pessoas que são filmadas e tratadas como quaisquer outras, com dignidade, histórias e dificuldades próprias (que nada se relacionam com a doença em si), de modo que, ocasionalmente, o filme vai intercalando esse dia-a-dia com a lembrança de que todas aquelas pessoas também precisam lidar com essa condição. Se a hanseníase é o ponto de partida para A Colônia, é justamente o determinismo gerado por ela diante de seus portadores, que precisam viver nessa sociedade de maneira quase que compulsória, mas que a partir dessas condições precisam tocar sua vida naquele microcosmo. Deste modo, é olhando para essa vida que se revela a condição de abandono de todas aquelas pessoas em uma certa espécie de não-lugar que nem parece existir no mapa do Brasil. Que A Colônia não vá muito além de uma exposição mais básica e fique com a sensação de que poderia ser muito mais profundo é uma pena.
Acompanhe a cobertura completa aqui.