O cinema de Yorgos Lanthimos é sempre estranho. Tal característica, porém, não é um defeito nem surge a partir de escolhas necessariamente equivocadas do cineasta grego. O estranho é algo essencial para o universo dos filmes de Lanthimos, e se faz presente não só pelas escolhas de rumo da história e pelos elementos da mise-en-scène – nos filmes do grego, quase todos os personagens se comportam de forma peculiar –, mas também pelos elementos extra-diegéticos, como a trilha sonora, a qual, para causar desconforto, costuma apostar em trítonos e acordes agudos de violino. Tais escolhas sempre existem a favor de uma ideia: a de construir um olhar cínico para o mundo das obras, seja desafiando nossas noções de justiça, como em “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, ou analisando as relações interpessoais familiares e amorosas, como em, respectivamente, “Dente Canino” e “O Lagosta”.
Esse estranhamento permite um descortinamento dos personagens dos filmes de Yorgos Lanthimos. Há uma frieza inerente aos humanos retratados, que os faz pensar, falar e agir como se não houvesse convenções sociais, como se não houvesse nada em jogo. Essa frieza, muitas vezes, leva os filmes ao ridículo, como em “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, quando um personagem literalmente diz que tudo é uma metáfora e um símbolo, mas também permite que o cinismo crie um humor negro admirável, como é o caso do mais despretensioso e divertido filme de Lanthimos, “O Lagosta”.
Em “A Favorita”, Lanthimos volta a utilizar o descortinamento dos sentimentos para criar alguma estranheza. Dessa vez, porém, o cineasta nos leva ao começo do século XVIII, durante o reinado de Anne da Grã-Bretanha (Olivia Colman). Sarah (Rachel Weisz), duquesa de Marlborough, é o braço direito da rainha até que uma nova funcionária da casa, Abigail (Emma Stone), se aproxima da rainha e ganha sua confiança. Partindo dessa disputa por poderes – Sarah e Abigail passam a rivalizar pelo posto de principal ajudante da rainha –, Lanthimos cria uma comédia que desdenha dessa sociedade, ao passo que também funciona como crítica da disputa por poderes em tal contexto político.
Já em seu primeiro plano, “A Favorita” insere o espectador no ponto de vista em que permaneceremos presos pelos 120 minutos que se seguem. Temos uma visão rasteira da rainha enquanto ela experimenta uma roupa, e o ângulo escolhido é inclinado de baixo para cima, o que nos joga na perspectiva dos animais que circulam pelo ambiente (os coelhos da rainha e os patos das demais figuras nobres do lugar). Vemos tudo de baixo, como se fôssemos seres inferiores, subalternos aos poderosos.
Lanthimos e seu diretor de fotografia, Robbie Ryan, mantém esse ponto de vista preso em ângulos baixos por quase todo o filme, fortalecendo a ideia de que não temos sequer o direito de nos aproximar da realeza. É interessante observar que a chegada de Abigail traz uma ruptura na forma de filmar “A Favorita”. A cena que introduz a personagem vivida por Emma Stone é filmada com uma lente grande angular, que evidencia como a futura “favorita” da realeza é um ser externo à bolha aristocrata, mas que não tarda para logo se adaptar ao modus operandi do lugar.
Ao ter o tabuleiro e a peça estabelecidos – e a analogia com um jogo se faz necessária, visto que é assim que todos os personagens encaram a vida no palácio real –, Lanthimos parte para criar pequenas problematizações daquele universo. A construção da mise-en-scène acontece por meio de muitos planos abertos, que evidenciam tanto a solidão da protagonista, quase sempre isolada e cercada por espaços vazios, quanto a riqueza que a personagem tem. Diferente de Kubrick e seu “Barry Lyndon”, porém, Lanthimos não parece tão interessado em analisar as estruturas daquela sociedade e o isolamento daquelas pessoas, e sim em utilizar tais elementos como pano de fundo para focar no jogo de poder que os personagens protagonizam.
Todo o universo de “A Favorita” é moldado de uma forma que faz com que seus personagens ajam com naturalidade independente da situação. Desde tentativas de assassinato a estupros, nada surpreende aqueles indivíduos. Essa escolha confere um tom cínico e possibilita que haja certa dose de humor negro no filme. Apesar disso, toda essa ambientação é pouco desenvolvida. O roteiro de “A Favorita” estabelece bem o cenário, seus personagens, suas ambições e as situações pelas quais todos passam, mas escolhe fechar-se em um drama focado no trio feminino principal, em vez de desenvolver mais profundamente aquele universo e suas idiossincrasias.
De certa forma, Yorgos Lanthimos parece tentar fazer uma releitura do clássico de Stanley Kubrick. Em ambas as obras, os personagens são essencialmente ruins, a diferença está justamente na direção. Se, em “Barry Lyndon”, Kubrick utilizava um humor mais sutil para constatar o fracasso daquela sociedade, em “A Favorita”, Lanthimos parece interessado em trazer esse humor para o foco da narrativa para debochar das disputas por poder. Enquanto o cineasta americano via a aristocracia com um olhar melancólico, o grego a vê com desdém.