Aaron Sorkin é um dos mais prestigiados roteiristas da atualidade. Mas grandes roteiristas não são necessariamente bons cineastas, já que o roteiro é um dos elementos menos cinematográficos do Cinema. Em “A Grande Jogada”, Sorkin tem seu primeiro grande projeto como diretor – além, claro, de assinar o texto. Em suas mãos está a interessantíssima história de Molly Bloom, americana que se tornou uma poderosa empresária do pôquer e, posteriormente, autora do livro que revelou os bastidores do submundo das partidas de Texas Hold’em em Hollywood. A oportunidade é perfeita para Sorkin mostrar seu talento como contador de histórias no audiovisual, e apesar de utilizar recursos interessantes de maneira repetitiva, a experiência de Aaron é bem-sucedida. “A Grande Jogada” funciona, muito por conta de Jessica Chastain, o coração do filme, mas também pelo trabalho consistente de Sorkin por trás das câmeras.
A trama acompanha as conversas de Molly com seu advogado, Charlie Jaffey (Idris Elba), que ajuda a preparar sua defesa diante do processo que pode levá-la à cadeia. Enquanto Charlie ouve de Molly sua versão dos fatos, o filme alterna essas conversas com flashbacks que imergem a narrativa no mundo do pôquer e ajudam o espectador a compreender o passado e as motivações da protagonista. Temos, portanto, a clássica história de ascensão e queda, contada única e exclusivamente sob o ponto de vista de Molly. Essa escolha permite que a personagem domine completamente a narrativa, ao ponto de suas emoções refletirem nos aspectos técnicos do filme – uma interessante escolha de Sorkin.
Tudo que Molly diz ou sente influencia diretamente no que a narrativa de “A Grande Jogada” mostra. O ato inicial, por exemplo, que passeia pelas memórias da personagem a fim de estabelecer sua trajetória como uma jornada sofrida e de estresse constante, saltando pelos anos da vida da protagonista conforme Molly troca de assunto em sua narração. Até elementos de videogame surgem, como placares e sinalizações ao lado de pessoas, o que ajuda a tornar Molly uma personagem dominante na forma de contar a história e faz com que a narrativa se molde às suas lembranças. Há ainda a narração em off – realizada pela própria protagonista -, que também é importante para manter esse domínio de Bloom sobre os fatos e a trama.
Quando os recursos fílmicos tradicionais são utilizados para estabelecer os sentimentos da protagonista, “A Grande Jogada” recorre ao básico. Em boa parte dos flashbacks, há uma fotografia calorosa, com planos mais fechados, que dão destaque aos rostos dos personagens e tornam o ambiente aconchegante. Quando o filme corta bruscamente para o presente, vemos o contraste: as conversas de Molly com seu advogado são filmadas em planos abertos, que ressaltam a distância entre os personagens e o vazio na nova vida da ex-empresária. Bloom ainda é filmada com uma luz fria – e em ambientes chuvosos em alguns momentos -, o que cria um sentimento inverso ao cordial tom característico do passado.
A montagem também tem papel importante ao estabelecer os flashbacks como fragmentos das memórias de Molly. Quando a personagem tem uma lembrança incompleta ou embaçada, por exemplo, há o uso de fade in e fade out na transição de planos, o que ajuda na imersão do espectador, já que este vê as cenas no mesmo tom que a protagonista. A sincronia entre narração e inserções de memórias também é essencial para que o espectador sinta-se imerso na mente de Molly, uma personagem que, por sua vida profissional (trabalhando nos meandros da lei) e pessoal (a personagem adquire vício em drogas), constantemente pensa e age de forma calculada e rápida.
Sorkin demonstra influência pelo teatro ao apostar, além do jogo de luzes, na movimentação de seus personagens pelo plano como forma de simbolizar as nuances de cada cena. Quando Molly é confrontada por seu chefe, que ameaça excluí-la do esquema do pôquer que se tornou seu ganha-pão, o personagem se distancia da mesa e puxa a protagonista. Há relação semelhante também entre Molly e Charlie, que, inicialmente, não demonstra interesse em representar a moça no julgamento, algo que é visível não só nos diálogos, mas na movimentação de Idris Elba, que mantém sempre alguma distância de Molly – que, por sua vez, constantemente questiona essa distância e até mexe a mobília do cenário para poder aproximar-se do advogado.
Estrutura convencional, truques estéticos repetitivos e Jessica Chastain como pilar dramático
“A Grande Jogada” é um filme que acredita ser muito estilizado, mas que, na realidade, é bem convencional em seus aspectos narrativos. Com exceção da construção protagonista – que mais à frente será comentada -, o roteiro segue uma estrutura bem convencional de ascensão e queda. Já o mencionado trabalho de fotografia repete as mesmas ferramentas por todo o longa, não demonstrando qualquer interesse em variar na construção da narrativa e desgastando o mesmo choque (trazido pelo contraste entre o passado quente e o presente frio) diversas vezes. “A Grande Jogada” se contenta com pouco. Lá pela terceira vez em que há o choque da transição de um plano quente para um frio, não há mais impacto ou surpresa.
Diferente de todo o resto do filme, Molly Bloom se destaca. Sorkin faz com que todos os elementos girem em torno da protagonista: além da fotografia e da montagem – que já foram citadas nos parágrafos anteriores -, todos os personagens surgem como contraponto a Bloom. O advogado faz exigências antes de aceitar representar Molly; o chefe tenta reduzir seu salário como forma de mantê-la na “coleira”. Todas as figuras masculinas de “A Grande Jogada” tentam subjugar e diminuir Molly e seus feitos. Nesse aspecto, entra o maior acerto do roteiro de Sorkin: criar uma relação firme entre Bloom e seu pai (vivido por Kevin Costner), o que serve tanto para mostrar como ela precisa enfrentar figuras masculinas autoritárias desde a tenra infância, como também para mostrar como a conturbada relação entre pai e filha fez da personagem uma figura incapaz de ceder aos homens.
É interessante perceber, portanto, que gradualmente os personagens se “dobrem” diante de Molly. O advogado Charlie Jaffey, que aos poucos é conquistado pela transparência de sua cliente, passa não só a defendê-la de forma veemente, como também a jogar o jogo dela – o momento em que Charlie oferece algo que vale sua carreira em troca da confiança de Molly funciona, ironicamente, nos mesmos moldes de uma aposta no jogo de pôquer. Chastain e o roteiro de Sorkin constróem uma protagonista que beira o “inquebrável”, que não abre mão de seus princípios ou joga o jogo de terceiros em momento nenhum. Dando nuances à personagem, Jessica Chastain é bem sucedida ao imprimir imponência quando confrontada – note como Bloom constantemente atravessa falas de outros personagens -, mas também ao dar fragilidade e humanidade – como quando sua postura vocal e rosto tornam-se mais fragilizados e expressivos diante de situações de iminente derrota.
“A Grande Jogada” não é um começo perfeito para Aaron Sorkin como diretor, mas traz mais uma atuação impressionante de Chastain, que conduz sua personagem sempre com delicadeza e sem nunca ceder ao overacting – apesar de haver inúmeras oportunidades para isso – e um roteiro que, apesar da estrutura óbvia, traz diálogos interessantes e personagens verossímeis. Temos aqui um filme não muito inventivo e que, em certo ponto, repete os mesmos truques (o que, em um filme de 140 minutos, torna a experiência desgastante). O resultado, porém, ainda é uma obra que conquista pela presença magnética de Chastain.