Marginalizados no gênero terror, os zumbis são conhecidos como sinônimo de produções de baixa distinção. Ainda assim, os seres putrefatos, são encontrados em diversos filmes, desde a década de 1930. Diferente dos outros monstros que habitam o universo cinematográfico, os zumbis não têm sua origem na literatura. Eles são um produto do século XX, relacionados ao contato dos norte-americanos com a ilha Hispaniola (atual Haiti e República Dominicana).
Com a ocupação dos Estado Unidos no Haiti, os assuntos comuns àqueles lugares foram adicionados aos diálogos norte-americanos. Esse acréscimo na cultura estadunidense refletiu nas mídias e, assim os primeiros mortos ambulantes foram caracterizados nas telas. Diferentes dos que conhecemos agora, seus precursores não eram ágeis, ou fisicamente decadentes, mas apáticos, esvaziados de qualquer personalidade. Isto explicitava a condição dos locais em meio ao domínio de seus colonizadores.
Apesar das alterações sofridas fisicamente pelos mortos-vivos, ao longo dos filmes, o medo da morte é o que move as ações dos que são representados.
Seabrook e Haiti, zumbis e Hollywood
A proximidade com o Haiti criou nas pessoas a curiosidade de entender a sua cultura. Pesquisadores como William Seabrook (1884-1945) – jornalista correspondente e aventureiro estadunidense – passaram a relatar em revistas e jornais suas descobertas e impressões sobre esses povos. Instigado pela falta de dados das pesquisas do antropólogo amador e jornalista Lafcadio Hearn, Seabrooke realizou diversas viagens ao país. Na década de 1920, ele aprofundou seu conhecimento nas crenças locais.
Após pesquisas sobre superstições, os dados coletados foram transformados no livro, A Ilha da Magia, publicado em 1929. No livro ele descreve a vivência com tribos haitianas, os rituais vodu e seu contato com um morto-vivo. Esta é apontada como fonte de inspiração para os primeiros filmes de terror sobre o tema, como White Zombie (White Zombie, 1932).
Nesse contexto, a procura por histórias de zumbis atinge Hollywood e, um novo tormento passa a assolar o imaginário cinematográfico. Passado o período de adaptação do subgênero ao cinema, acontece a primeira decadência dos filmes que abordavam o tema. Eles foram transformados em comédias sem sentido, e abandonarem os questionamentos relacionados às políticas de domínio da região caribenha. Dos anos 1930 aos 1940, o que foi produzido é em sua maioria irrelevante, reforçando a ideia de que essas produções eram ordinárias.
Val Lewton revive os mortos
O estúdio RKO Pictures, que nos anos 1940 enfrentava uma crise financeira. Como meio de “engordar” sua conta e evitar a falência que “batia a sua porta”, ele produzia filmes de terror. Val Lewton estava a frente dessa unidade. Ele ficou conhecido por produzir filmes como Sangue de Pantera (Cat People, 1942) e Homem Leopardo (Leopard Man, 1943), ambos de baixo orçamento.
Com o sucesso inesperado de Sangue de Pantera, que atraiu o público por apresentar um horror psicológico em seu enredo, Lewton optou por aplicar a mesma “fórmula” em A morta-viva (I walked with a zombie, 1943). A retomada das raízes caribenhas retira o zumbi dos porões da Poverty Row (termo que identifica o cinturão da pobreza do cinema americano) e o eleva ao status de cânone cinematográfico do terror.
Preocupado com a qualidade do que seria apresentado, o filme teve seu roteiro alterado inúmeras vezes para que nele estivesse contido informações verdadeiras (lembrando que suas fontes de pesquisa refletem a visão etnocêntrica do estrangeiro sobre o “exótico”). Nascia assim um importante registro da relação humana com a morte, poetizado pela linguagem cinematográfica.
A morta-viva
“Caminhei com um zumbi [risos]. Parece algo estranho. Se alguém tivesse me dito isso há um ano, não sei se saberia o que é um zumbi. Talvez tivesse a noção de ser algo estranho ou assustador, até um pouco engraçado. Tudo começou de um jeito tão comum…”
O trecho acima é a narração em off da personagem Betsy (Frances Dee), na cena inicial. Observamos nesse momento duas silhuetas, caminhando pela praia. Curiosamente, essa abertura não está contextualizada na narrativa. Em momento algum, além desse “prólogo”, a confraternização de Betsy e Carrefour (Darby Jones) acontece. Essa cena paira como a fronteira entre a verdade e a mentira dos fatos relatados.
Betsy é enfermeira. Contratada por Paul Holland (Tom Conaway) para cuidar de sua esposa inválida Jessica (Christine Gordon), se muda para a ilha de San Sebastian. Os “reais” motivos da doença de Jessica são descobertos a medida que sua curiosidade a leva à investigar o fato com a população local. Enquanto os médicos afirmam que ela sofre de uma febre tropical, os nativos sabem que ela é um zumbi. Mas o que a teria levado a esse estado? Segundo os boatos, Jessica e o cunhado, Wesley Rand (James Ellison) planejavam fugir da ilha antes dela adoecer. Seu estado então é uma punição pela infidelidade, ou uma maldição, ou mesmo uma febre. O filme é sobre como julgamentos são feitos.
Em cena, o que parece verdadeiro pode ter outro significado a partir de uma observação cautelosa. Os tambores que em princípio soam como mau presságio, após um tempo são apenas sons locais. O meio-irmão inconveniente carrega em si a dor do amor e da culpa. O que importa é o ponto de vista, como as situações são lidas e interpretadas e, se há senso crítico ou não.
Morte em vida
Realizar nos anos 1940 um filme que de maneira sutil adentra nos anseios da humanidade e questiona a percepção do mundo é memorável. Diferente de seus precursores, que colocavam no lugar de primitivo e desconhecido apenas a cultura afro-descendente latina, este foca nesse olhar sobre as limitações da cultura branca norte-americana. A doença de Jessica não é curada pelos conhecimentos ancestrais nem pelos acadêmicos. As perguntas são multiplicadas e não respondidas. A certeza de que a chamada “civilização” detém o poder de resolução é eliminada.
Carrefour e a esposa catatônica são seres que amedrontam por sua passividade. A falta de atividade nesses corpos é mais chocante do que um ataque violento. O mistério sobre o que os torna assim, elimina a capacidade de entender o que é exato. A dúvida amedronta.
Somos feitos de certezas, mesmo que estas sejam subjetivas. Nesse caso, a morte é melhor, pois é incontestável a sua chegada em algum momento.
Referência bibliográfica:
RUSSEL, Jamie. Zumbis: o livro dos mortos. Leya. São Paulo:2011.
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