Numa cena de “A Valsa de Waldheim”, de Ruth Beckermann, um professor universitário austríaco define o então candidato à presidência do país, Kurt Waldheim, como a perfeita encarnação da Áustria, com sua exemplar educação (ele fora, por dez anos, Secretário-Geral da ONU) aliada à desfaçatez necessária para negar um passado de engajamento nazista. Como se trata de um filme sobre a eleição de um político conservador com tal currículo, apesar de toda a campanha negativa da qual foi alvo, se torna irresistível a comparação com a recente ascensão de Jair Bolsonaro ao poder no Brasil. Mas esse tipo de analogia pode passar por um caminho mais interessante e revelador, relacionado à supracitada citação do professor austríaco.
Em 2002, Lula definiu o momento de sua diplomação na Presidência da República como o encontro do Brasil consigo mesmo. Ele se referia ao simbolismo de ter no cargo máximo do governo um ex-operário e migrante nordestino, representante de milhões de homens e mulheres que sobrevivem diariamente às mais diversas privações. Quinze anos depois, a eleição de Bolsonaro marca encontro semelhante. Mas o Brasil que se reconhece agora na presidência é o da violência e do preconceito, da herança escravista e da manutenção de privilégios de classe e gênero. Um país que, paradoxalmente, não nega o de Lula, mas o interpenetra: é perfeitamente factível a existência de ex-eleitores do petista atualmente engajados no bolsonarismo.
Nesse sentido, “A Valsa de Waldheim” se comunica com o espectador brasileiro contemporâneo menos por mostrar a chegada de um político de extrema-direita à presidência e mais por refletir sobre o quanto esse tipo de acontecimento se conecta com valores deploráveis profundamente enraizados na sociedade. Ao se estruturar como um registro de memória, construído a partir do encontro de imagens que a própria diretora captou em 1986 com outras produzidas por canais de TV no mesmo período, o filme reflete a respeito da luta política contra o abominável, dos limites de sua efetividade imediata, da frustração advinda daí, mas também da importância de começar uma resistência que poderá frutificar algum tempo depois.
Há, novamente, pontos de contato com o Brasil, dessa vez relacionados ao movimento “Ele não”, que, apesar de infrutífero no intento de barrar uma vitória eleitoral de Bolsonaro, contribuiu para a reunião de forças ideológicas distintas, que havia muito não dialogavam, contra um inimigo comum. São alentadoras as cenas de “A Valsa de Waldheim” que mostram as primeiras reuniões dos críticos de Waldheim, que depois desembocariam num movimento significativo, de atuação persistente durante o governo do ex-membro das SA nazistas.
Por fim, vale observar uma característica controversa do discurso de “A Valsa de Waldheim”: para reforçar o argumento da permanência da inclinação nazista de Waldheim, Beckermann associa algumas medidas dele no comando da ONU ao antissemitismo estruturante dessa ideologia. A aproximação com países árabes na década de 1970 e a definição, pela organização internacional, do sionismo como uma forma de racismo (resolução 3379, de 1975) são citadas no filme com esse propósito. É uma interpretação possível, mas que não leva em consideração a atuação de fato criminosa do Estado de Israel na questão Palestina, nem o fato de que a aprovação de tal resolução se deu com o apoio de quase cem países (inclusive o Brasil), e não como uma decisão monocrática de Waldheim. Aqui, “A Valsa de Waldheim” cai num problema recorrente nesse tipo de documentário político expositivo: a propensão a fechar espaços para contradições discursivas internas, que poderiam tornar mais complexas, menos tautológicas, as teses defendidas por sua diretora.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.