A Viagem de Pedro

A Viagem de Pedro

Masculinidade e poder

Wallace Andrioli - 24 de janeiro de 2022

A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky, se filia a uma certa tendência do filme histórico brasileiro contemporâneo (talvez chamar de tendência seja exagero, não são tantos exemplares assim) que olha para o passado anterior ao século XX numa perspectiva intimista e realista. Outros casos recentes semelhantes são Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, e Vazante (2017), de Daniela Thomas. Saem de cena a grandiosidade oficialesca de um Independência ou Morte (Carlos Coimbra, 1972), a alegoria problematizadora tão cara ao Cinema Novo e a sátira escrachada em voga no período da Retomada, em filmes como Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995) e Tiradentes (Oswaldo Caldeira, 1999). O que se tem aqui, ou se pretende ter, é uma versão fílmica da História mais arthouse, mas sempre vinculada a um cinema narrativo convencional, sombrio, pessimista.

No entanto, permanecem alguns traços dessas vertentes anteriores. Em A Viagem de Pedro, Bodanzky apresenta um D. Pedro I (Cauã Reymond) bem menos heroico que o de Coimbra e até tenta debater essa concepção de heroísmo na voz over que abre e encerra o filme, mas ainda assim o personagem é tratado como um protagonista da História. Há uma indisfarçável fascinação da câmera da diretora por ele, mantendo, mesmo com todos os matizes, certa grandiosidade associada a sua figura. Algo um pouco na pegada das cinebiografias de Pablo Larraín. Herói moderno. E a presença de Reymond, hoje o maior galã do audiovisual nacional, protagonista da atual novela das 21 horas, ecoa a escalação de Tarcísio Meira para o mesmo papel lá no início da década de 1970.

Bodanzky, como aliás Gomes em Joaquim e Thomas em Vazante, não olha para o passado dos séculos XVIII e XIX apenas buscando a compreensão de aspectos desses contextos históricos. Ainda existe, mesmo que numa intensidade bem menor que a cinemanovista, o interesse de usar personagens e acontecimentos da História do Brasil para fazer comentários totalizantes, sejam eles sobre o presente do país ou sobre o poder em geral. Joaquim e Vazante se enquadram mais no primeiro caso; A Viagem de Pedro, no segundo.

A diretora (e roteirista, ao lado de Luiz Bolognesi, Laura Malin e Chico Mattoso) busca construir esse comentário a partir da analogia óbvia com a impotência sexual, mas, novamente, sua câmera é demasiadamente encantada com a presença de Reymond para conseguir produzir algum distanciamento crítico. Provavelmente, o espectador mais se apieda de D. Pedro I nos momentos de maior sofrimento e torce para que ele supere seus problemas do que toma parte numa possível desconstrução da imagem do imperador. Nesse sentido, A Viagem de Pedro está mais próximo do que imagina Bodanzky da reiteração do heroísmo tradicionalmente atribuído ao seu protagonista (herói angustiado, hesitante, complexo, em crise, mas ainda um herói).

Por fim, o filme tem o mérito de optar por um recorte cronológico (os meses que D. Pedro I passou viajando de volta a Portugal, após abdicar do trono brasileiro), que possibilita, aí sim, a construção de um olhar bastante particular. Por se tratar de um momento pouco relatado da biografia do imperador brasileiro, conforme informa o letreiro final de A Viagem de Pedro, Bodanzky e os demais roteiristas ganham liberdade para fabular, mergulhar em traços de personalidade não tão públicos do protagonista e em relações não registradas pela historiografia.

No entanto, o que o filme faz com essa liberdade não é algo realmente digno de nota. A caracterização da angústia crescente de D. Pedro I se dá por escolhas de roteiro e encenação bastante óbvias, principalmente aquelas que posicionam o personagem delirante diante de cenas do seu passado ou de um embate imaginário com o irmão e inimigo D. Miguel (Isac Graça). Por outro lado, ao menos as diversas dinâmicas relacionais estabelecidas no interior da fragata britânica são eficazes e, algumas delas, verdadeiramente interessantes: a humanização do mito pretendida por Bodanzky ganha concretude especialmente quando o protagonista compartilha histórias de sua vida amorosa com o capitão da embarcação (Francis Magee), já que ao comentário crítico gravoso sobre masculinidade e poder se soma alguma leveza, proveniente de uma conversa despretensiosa entre dois homens do início do século XIX.

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